Com maior visibilidade no Brasil, a educação domiciliar está a caminho da regulamentação
Por Patrícia Scott
Por volta das 7h, Maia, 14 anos, Andreas, 17 e Nárek, 9; acordam, tomam um reforçado café da manhã, fazem o devocional diário e, logo a seguir, iniciam mais um dia de estudos em homeschooling – modalidade de ensino em que pais ou tutores responsáveis assumem o papel de professores dos filhos dentro de casa.
Nárek, ao contrário de Andreas e Maia, nunca frequentou a escola. A opção da família por essa modalidade educacional foi impulsionada pela necessidade de Andreas, que é autista com Síndrome de Asperger [possui inteligência média ou acima da média]. “Na escola, ele terminava as atividades antes dos colegas, e queria brincar com os demais que ainda estavam fazendo os exercícios”, conta a dona de casa Patrícia Caycedo, de 47 anos, que acrescenta: “A professora, então, nos orientou a não estimulá-lo em casa. Daí percebemos que precisávamos repensar o método educacional”.
A decisão de tirar Andreas da escola não aconteceu imediatamente. Patrícia ressalta que levou pelo menos dois anos pesquisando sobre homeschooling, justamente para que todas as suas dúvidas fossem sanadas e pudesse fazer a escolha com segurança. “Conversei com pais que já possuíam amplo conhecimento de educação domiciliar, e entendi que era a melhor opção para atender as necessidades do meu filho”, salienta. Para acompanhar bem de perto o desenvolvimento educacional dos filhos, ela pediu demissão do emprego.
Andreas e Maia estão em educação domiciliar há sete anos, e Nárek desde a alfabetização, aos quatro. “No início, para adaptação das crianças requer paciência e estímulo, porque precisam aprender a estudar sozinhas”, revela Patrícia, que optou pelo método de homeschooling americano. “Temos uma rede de acompanhamento, mas é preciso compreender que o processo é totalmente diferente da escola. Não há provas ou classes, por exemplo”, enfatiza Patrícia, que congrega na Igreja Batista Pedras Vivas, em Vila Califórnia, na Zona Leste de São Paulo.
A atual legislação brasileira
Ao todo, o Brasil tem quase 47,3 milhões de alunos, distribuídos entre 179.533 escolas de ensino básico, entre públicas e privadas, segundo o Ministério da Educação.
A Constituição Federal estabelece a “educação básica obrigatória e gratuita dos 4 aos 17 anos de idade” (artigo 208, inciso I), sendo dever da família assegurar à criança e ao adolescente o direito à educação (artigo 227). Os pais têm a obrigação de assistir, criar e educar os filhos menores (artigo 229, da Constituição, e artigo 1.634, inciso I, do Código Civil).
Já a Lei 8.069, de 13 de julho de 1990, prevê para os pais a responsabilidade de matricular seus filhos na rede regular de ensino, artigo 55. Sancionando tal dever, estabelece a lei o crime de abandono intelectual no artigo 246: “Deixar, sem justa causa, de prover à instrução primária de filho em idade escolar: Pena – detenção, de quinze dias a um mês ou multa”.
Nesse sentido, os pais que desejam optar pelo ensino domiciliar deverão recorrer à justiça. No entanto, desde novembro de 2016, o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou a suspensão nacional de todos os processos em curso no Poder Judiciário, individuais ou coletivos, que tratam dessa questão, até o desfecho do Recurso Extraordinário (RE) 888.815, que discute se o homeschooling pode ser considerado meio lícito de cumprimento do dever de prover a educação aos filhos.
Homeschooling na pautado Congresso
No Brasil, de acordo com a Associação Nacional de Educação Domiciliar (Aned), há 22 mil estudantes nessa modalidade de ensino, englobando 11 mil famílias. A taxa de crescimento ao ano, segundo a instituição, é de 53%. O tema ganhou novo fôlego no país, no ano passado, quando o presidente Jair Bolsonaro enviou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei (PL) 2.401/2019 que regulamenta a educação domiciliar.
O PL altera a Lei 8.069, de 13 de julho de 1990, que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Vale enfatizar que, em decisão histórica, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a constitucionalidade da educação domiciliar.
O ministro Alexandre de Moraes pontuou que a Constituição Federal, nos artigos 205 e 227, prevê a solidariedade do Estado e da família no dever de cuidar da educação das crianças. Já o artigo 226 garante liberdade aos pais para estabelecer o planejamento familiar. Segundo ele, o texto constitucional visou colocar a família e o Estado juntos para alcançar uma educação cada vez melhor para as novas gerações. Só Estados totalitários, de acordo com o ministro Alexandre, afastam a família da educação de seus filhos.
Distrito Federal já tem regulamentação
O Distrito Federal foi a primeira unidade da Federação a regulamentar o ensino domiciliar. O governador Ibaneis Rocha (MDB) assinou, em dezembro, a lei que trata do assunto e que entrou em vigor a partir de 31 de janeiro de 2021. Na prática, o texto permite aos responsáveis, por estudantes com menos de 18 anos, a educar crianças e adolescentes em casa, sem necessidade de matriculá-los em escolas. Com a nova norma, os interessados deverão se cadastrar junto à Secretaria de Educação (SEEDF) e passar por uma etapa na qual demonstrarão ter aptidão técnica para desenvolver as atividades pedagógicas ou informar que contratarão profissionais capacitados para o ensino dos estudantes fora da escola.
A Associação de Pais e Alunos do Distrito Federal (Aspa-DF) apoia a legislação por entender que é preciso assegurar em lei o direito das famílias que escolhem essa forma de educar os filhos. “A prática da educação domiciliar é um fato no DF. Sem uma garantia legal, as famílias adeptas permaneceriam sujeitas às injustas perseguições e a discriminação”, afirmou a entidade, em nota.
Em julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF), em 2018, a Corte decidiu que o ensino domiciliar não é inconstitucional, mas seguiria ilegal até que o Congresso Nacional legislasse sobre o tema. Sendo assim, o Distrito Federal ter tomado a decisão antes do Congresso Nacional pode torná-la inconstitucional. O tema é matéria privativa da União no âmbito do Congresso Nacional. O DF precisaria aguardar a deliberação do Congresso para depois regulamentar em nível local, atesta João Marcelo Borges, pesquisador em Brasília do Centro de Desenvolvimento da Gestão Pública e Políticas Educacionais, da Fundação Getúlio Vargas, em entrevista à revista Exame.
Formato brasileiro
Austrália, Portugal, Finlândia, França, Bélgica, Paraguai, Rússia, Inglaterra, Canadá, Estados Unidos, Suíça e África do Sul são alguns dos países onde a modalidade de ensino é regulamentada. Já Alemanha e Suécia, por exemplo, não permitem a prática.
O Brasil tenta trilhar esse mesmo caminho com o apoio do ministro da Educação Milton Ribeiro. Ele salienta que o ensino domiciliar não irá extinguir com as escolas. “Cada família terá a opção de escolha, levando em consideração a sua realidade e necessidade”, frisa. O ministro cita que a regulamentação dará segurança às famílias, tendo em vista que, atualmente, a lei determina que o menor esteja matriculado em uma escola. “Caso a família seja denunciada ao Conselho Tutelar ou ao Ministério Público terá que responder judicialmente, inclusive podendo perder a guarda da criança ou do adolescente”.
Dois mecanismos do Projeto de Lei merecem destaque: os que tratam do cadastro das crianças no Ministério da Educação e processo de avaliação. “As famílias terão de fazer um cadastro via plataforma, na internet, para inserir uma série de informações relativas ao menor: idade, vínculo com a criança e/ou adolescente, certidão criminal, plano pedagógico individual, caderneta de vacinação atualizada”, esclarece Pedro Hollanda, secretário adjunto da Secretaria Nacional da Família, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Ele diz que os documentos a serem apresentados já estão previstos no texto da lei e que visam dar mais segurança para toda a sociedade.
Com relação às avaliações, Pedro Hollanda afirma que ocorrerão anualmente com possibilidade de recuperação. “É uma avaliação que acontece como no ambiente escolar, ou seja, desde o segundo ano do Ensino Fundamental até o último ano do Ensino Médio”, esclarece. Ele avalia que a modalidade reduz as diferenças. “É o princípio da isonomia entre o estudante da escola e aquele que aprende com a educação domiciliar”.
Pais são mediadores
“O homeschooling ocorre, de fato, quando os pais assumem por completo o controle do processo global de educação dos filhos”, assegura Rick Dias, presidente da Associação Nacional de Ensino Domiciliar (Aned). Ele explica que a escola é uma invenção moderna, que tem pouco menos de 200 anos. “A humanidade se desenvolveu a partir da educação familiar, na qual as crianças eram educadas pelos seus pais ou tutores”, assevera. Na educação domiciliar, “os pais ensinam hábitos, crenças, costumes, valores, moral, como também a parte acadêmica, lembrando que eles serão mediadores e não, professores”. Isso significa, diz Rick, que os pais precisam levar os filhos a pesquisar, questionar e buscar conhecimento.
Ao comparar o modelo tradicional à educação domiciliar, Rick destaca que a escola é fast food com tudo definido no cardápio, em combos, produzindo passividade no aluno. “O papel dos pais é levar os filhos a serem sujeitos do conhecimento, conduzindo-os a se tornarem autodidatas”. Assim, os pais educadores prezam por um ensino personalizado, buscando desenvolver o potencial, os dons e talentos de cada criança e adolescente. “Então, o material didático está diretamente ligado ao modelo pedagógico adotado por cada família”, pondera e exemplifica: “Muitos pais adaptam materiais de escola. Outros traduzem matérias de outros países, e há aqueles que constroem seu próprio material”.
O presidente da Aned alerta os pais que desejam adotar o método a pesquisarem. “Costumo dizer que homeschooling é para todos, mas não é para todo mundo”. Por isso, segundo ele, as famílias que desejam realmente optar por essa modalidade devem pesquisar e buscar conhecer o modelo de ensino, avaliar todos os prós e contras e, então, tomar a decisão. “Não há relação, necessariamente, com condição financeira ou acadêmica dos pais, mas com o quanto eles estão dispostos a mudar até mesmo o seu estilo de vida”, finaliza.
Lugar de pluralidade
Na opinião da pedagoga Dayana Andrade, a questão não é ser a favor ou contra a educação domiciliar, mas entender os motivos que levaram à família a escolher o homescholling. “Boa parte que é a favor justifica os ensinamentos de valores distorcidos ou o bullying para tirar o filho da escolha. No entanto, não vejo ser esta a solução”, opina e continua: “Valores são ensinados pela família. A escola é lugar de pluralidade, que gera debates para o amadurecimento e o desenvolvimento do indivíduo, que precisa aprender a lidar com o diferente e a respeitar”. Por outro lado, Dayana afirma que, dependendo das necessidades do menor, a educação domiciliar pode ser mais adequada. “Sabemos que muitas escolas não estão preparadas para atender a demanda de inúmeros alunos, o que compromete o aprendizado”.
A especialista acredita no tripé família, escola e Estado para a construção de uma educação de qualidade. “É claro que cada caso é um caso. Entretanto, não vejo que a maioria das famílias tenha condição de realmente realizar uma educação domiciliar com todos os eixos e as competências necessárias para a formação, que serão importantes mais tarde no mercado de trabalho”. E ainda há o quesito socialização que, de acordo com a pedagoga, é imprescindível para crianças e adolescentes. “É claro que existe a convivência com outros menores no condomínio, no curso, com os primos ou com vizinhos, mas não supre a falta do relacionamento escolar que é mais estreito”.
Competição entre modalidades
Para a educadora Maria Celi Chaves Vasconcelos, professora titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), e autora do livro Educação Domiciliar no Brasil: Movimento em Debate, a defesa do homeschooling não pode ser feita com argumentos que desqualifiquem a escola, tendo em vista que essa instituição alcança e é necessária para a grande maioria das famílias.
“Se essas deficiências existem, precisam ser sanadas”, analisa. É fundamental compreender, segundo ela, que não deve haver competição entre as modalidades de ensino. “São escolhas das famílias. A regulamentação da educação domiciliar não irá alterar o processo de escolarização existente, cujo público-alvo é outro”.
Apesar da liberdade que o homeschooling traz, Maria Celi alerta que o modelo que está sendo discutido no Brasil prevê o controle do Estado, com cadastramento, acompanhamento, avaliação e fiscalização do processo, diferentemente de outros países.
Maria Celi acredita que a principal motivação das famílias ao aderir ao homeschooling esteja ligada à praticidade, à questão financeira e às necessidades específicas das crianças e adolescentes, e não às questões religiosas, morais ou de valores.
Preparação para a vida
O ensino domiciliar não é novidade. Há muitos séculos, as famílias que compunham a elite das sociedades, principalmente na Europa, eram adeptas dessa modalidade educacional.
No Brasil a popularização do homeschooling começou no século XIX. Especialistas argumentam que as diferenças regionais podem impactar na implantação desse modelo. “Em um país como o nosso, com tantas disparidades, é difícil afirmar que todas as famílias estão aptas à educação domiciliar, não podemos comprar a realidade brasileira com a de países europeus, Estados Unidos ou Canadá”, avalia a pedagoga Elizabeth Guimarães.
Se por um lado, existem muitos problemas na rede educacional, em contrapartida, a escola propicia muitos resultados positivos. “Muitas crianças e adolescentes ficam livres de abusos cometidos pelos adultos graças à escola. Outros tantos são diagnosticados com transtornos, por exemplo, por estarem em contato com o professor”, pondera Elizabeth. Quanto à blindagem do mundo, argumento muito atrelado à educação domiciliar, a pedagoga não acredita que os menores ficarão livres de tomarem conhecimento das mazelas ou das diferenças existentes no mundo. “Eles têm acesso à internet, redes sociais. A grande questão é serem preparados para a vida, de maneira ampla, seja na escola ou em casa”.
A Bíblia destaca a importância da participação dos pais no processo educacional dos filhos, seja na escola ou em casa. Provérbios 22:6 diz: “educa a criança no caminho em que deve andar; e até quando envelhecer não se desviará dele”.
O personagem bíblico Salomão deixa bem claro que os pais devem estar lado a lado com os filhos, para que estes possam aprender bons valores e, dessa forma, viver de forma plena e abundante. Talvez o maior desafio das famílias seja impulsionar os filhos a colocarem em prática, verdadeiramente, os ensinamentos recebidos em casa, independentemente do local em que aprendam.
Dicas de livros sobre homeschooling
Educação domiciliar no Brasil: movimento em debate
Maria Celi Chaves Vasconcelos – Editora CRV
O livro aborda a temática com sobriedade e clareza. Segundo a autora, não se trata apenas de ser contra ou a favor do ensino doméstico, mas de averiguar seus fundamentos históricos, sociológicos.
Educação clássica e educação domiciliar
Wesley Callihan, Douglas Jones e Douglas Wilson – Editora Monergismo
À medida que examinamos as ruínas educacionais ao nosso redor, a educação clássica e cristã parece uma ideia cujo tempo chegou. Cada vez mais pais, cristãos estão percebendo os fracassos da educação moderna e desejam uma alternativa.
A mente bem treinada: um guia para educação clássica em casa
Jessie Wise e Susan Wise Bauer – Editora Klasiká Liber
As autoras defendem que os pais ou responsáveis precisam assumir o comando da educação dos filhos. Para elas, não é preciso reformar o sistema escolar, mas se dedicar para desenvolver as habilidades dos filhos.