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quinta-feira, 2 maio 2024

A igreja no mundo ou o mundo na igreja?

Foto: Reprodução
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Como as novas gerações se adaptaram à Igreja e como a Igreja entende essa nova mentalidade

Por Rafael Ramos

Uma resolução divulgada em maio deste ano pela Convenção dos Ministros e das Assembleias de Deus no Estado do Mato Grosso (Comademat), presidida pelo pastor Sebastião Rodrigues de Souza, gerou polêmica depois de se tornar pública na internet. Na declaração, a Mesa Diretora estipula normas de conduta para os membros das ADs.

Tomando como base os textos bíblicos de I Coríntios 11:14-15, I João 2:15 e II Timóteo 2:25-26, o documento orienta aos homens que não façam uso de cabelos compridos ou com corte moderno, tampouco de barba, cavanhaque, brinco, piercing, short, bermuda, camiseta regata ou roupas extravagantes. Já as mulheres devem evitar trajes masculinos, curtos e transparentes e decotes exagerados, além de maquiagem e joias.

A resolução proíbe, ainda, que os membros tenham aparelho de TV em casa e acompanhem a programação das emissoras; veta o uso de bateria nos cultos; adverte contra jogos, principalmente futebol; e se mostra contrária à ida de cristãos aos cinemas. Ao final, a Comademat cita o trecho de II Timóteo 2:25-26 – “Instruindo com mansidão os que resistem, a ver se porventura Deus lhes dará arrependimento para conhecerem a verdade, e tornarem a despertar, desprendendo-se dos laços do diabo, em que à vontade dele estão presos”.

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Apesar de o apóstolo Paulo recomendar em I Coríntios 14:40 a fazer “tudo decentemente e com ordem”, tais determinações dividiram opiniões nas mídias sociais e até mesmo nas rodas de amigos e conversas em estudos bíblicos na igreja. De um lado, estão aqueles mais conservadores; de outro, há a parcela que acredita que “o Senhor olha para o coração”, como descrito em I Samuel 16:7, e que tais costumes não encontram espaço nos dias de hoje.

A igreja no mundo ou o mundo na igreja?
“Os valores da Palavra não podem ser adaptados, mas a forma de comunicá-los, sim” – Luciano Subirá, pastor da Comunidade Alcance em Curitiba (PR) e responsável pelo Ministério Orvalho

Na contramão da corrente mais tradicionalista, os muitos ministérios mais jovens que surgem no Brasil e no mundo adotam métodos menos rigorosos para atingir os chamados millennials, ou integrantes da geração Y. Lançam mão até de paredes pretas, fumaça e show de luzes. Integrantes de grupos de louvor e até os obreiros aderem a roupas “estilosas”, chapéus, alargadores e tatuagens. E o pastor, no lugar do terno e gravata, apresenta um visual mais despojado. Muitas vezes, o culto não se restringe a um local, pois, com as redes sociais, ministérios descobriram uma ferramenta indispensável quando o assunto é comunicar o Reino.

Conflito de gerações

O consultor Volney Faustini, especialista no estudo dessas gerações, analisa que todas as instituições que lidam com jovens – desde a mídia tradicional, passando pelas escolas e universidades e chegando às igrejas – estão aprendendo a se engajar e a se envolver com esse público.

“Há um fenômeno presente na atratividade das diferentes gerações que é a música moderna compassada e envolvente atrelada a ambientes descolados. É difícil separar quando termina o genuíno e inicia-se a manipulação. A pregação envolvente e centrada no indivíduo pode dar resultado no curto prazo, porém não dura. Volta-se mais rapidamente à porta de saída. O simples, o diálogo, a escuta, o grupo pequeno, o olhar no outro e do outro ainda são os maiores trunfos que o pastoreio e a jornada cristã oferecem. Não há melhor alternativa”, defende.

Em uma entrevista à Comunhão, o pastor Luciano Subirá ressaltou que grande parte dos líderes evangélicas têm dificuldade com o comportamento da juventude e se esquece de que já foram moços um dia, quando também não se adequavam à geração anterior.

“Quando comecei a pregar com 18 anos, usava calça jeans e camisa por fora dela. Isso, para o meu pai, era quase um ultraje, porque ele era de uma geração que falava de terno e gravata. Hoje, aos 46 anos, visto a mesma roupa, mas não sou mais o revolucionário, virei o tiozão. Temos de contextualizar a comunicação, e não a mensagem, que é imutável. E alguns têm feito isso. Os valores da Palavra não podem ser adaptados, mas a forma de comunicá-los, sim.”

Entretanto, com tanta adaptação e modernidade apresentadas, aparecem vários questionamentos, como: afinal, a Igreja está inserida na sociedade sendo “luz do mundo e sal da terra” ou a Noiva de Cristo se deixou contaminar pelos manjares deste século? Com base justamente no texto de João 8:12, o pastor Tiago Stachon acredita que, “quando as organizações humanas conseguem ser Jesus onde elas estejam, aí a Igreja será luz no mundo”.

“Se quero preparar um ambiente para dedicar Jesus nEle e deixar as pessoas mais abertas para recebê-lO, ótimo. Agora, se quero substituir o entretenimento do mundo por um entretenimento vazio dentro de um templo, não gosto. Usar ferramentas para apresentar Jesus com mais qualidade é importante, mas, no caso dos shows de luzes, se estamos falando de técnicas de iluminação que ajudam a deixar ambientes mais receptivos e deixam as pessoas mais abertas para receber uma mensagem ou um louvor, isso vale. Mas, se é somente pirofagia para substituir entretenimento do mundo, tenho minhas ressalvas”, pondera.

A igreja no mundo ou o mundo na igreja?
“Quando as organizações humanas conseguem ser Jesus onde elas estão, aí a Igreja será luz no mundo” Tiago Stachon, pastor

Stachon também analisou as mensagens pregadas atualmente nos púlpitos. Algumas lideranças questionam que os sermões, antes voltados para o confronto contra o pecado, foram trocadas por palavras de autoajuda que soam agradáveis aos ouvintes.

“Jesus veio para ajudar, e a Bíblia é um manual de autodescobrimento da criatura pelo Criador. Inevitavelmente, sempre que as Escrituras  forem pregadas, serão sinal de ajuda na vida do ouvinte. Mas isso é diferente de mantras motivacionais, programas de coaching humanistas, teorias de autossuficiência. Isso empobrece o Evangelho da Cruz e precisa ser olhado com cuidado para não virarmos clínicas humanistas. Jesus é o centro”, enfatiza.

“A motivação de se engajar politicamente deve ter sua origem no chamado bíblico de ser sal e luz, e não por uma forma reativa” – Volney Faustini, consultor

Usos e costumes

Muitas vezes atrelados ao “andar em santidade”, os usos e costumes geram as mais diversas controvérsias. O pastor Tiago Stachon esclarece que a santidade começa com o recebimento do Espírito Santo, que nos irá conduzir a uma conversão natural e individual.

“A Bíblia é tão grande e tão profunda que dá para achar respaldo para qualquer coisa. Isso não significa que tem de transformar isso em uma firme doutrina. Mais uma vez, não podemos fechar esse assunto somente com respaldos. Consequentemente, se estivermos sensíveis a Ele, algumas práticas antigas que não glorificam a Deus serão ressignificadas em nossos corações por Ele. Então, após isso, mudaremos nossos costumes, não por imposição, mas por amor. O contrário disso é só religião”, explica.

Analisando a lista divulgada pelo pastor Sebastião Rodrigues de Souza, dois itens que estão entre os temas mais polêmicos (e debatidos) no meio evangélico são os piercings e as tatuagens. Muitos dos que são contra tais adereços e até os veem como algo demoníaco tomam como base a passagem de Levítico 19:28 – “Não fareis cortes no corpo como sinal de lamento pela morte de alguém, também não fareis nenhuma tatuagem. Eu sou Yahweh”.

Observando os tópicos defendidos pela resolução da Assembleia de Deus, a pastora Eristelia Bernardo S. Martins, da Igreja Internacional da Graça de Deus em Caratinga (MG), acredita que muitos dos usos e costumes mostrados na Bíblia Sagrada não valem mais para o nosso tempo, portanto não devem ser ensinados hoje.

“Existem atualmente costumes e práticas diferenciadas em igrejas porque, infelizmente, há muito desconhecimento bíblico. A falta de conhecimento faz com que cada igreja interprete a Bíblia de uma forma ou até mesmo crie normas para dirigir os membros sem nenhum respaldo por desconhecerem as Escrituras. Aliás, todo erro advém do fato de não conhecermos a Palavra”, alerta.

A igreja no mundo ou o mundo na igreja?
“A falta de conhecimento faz com que cada igreja interprete a Bíblia de uma forma ou até mesmo crie normas para dirigir os membros sem nenhum respaldo por desconhecerem as Escrituras” –Eristelia Bernardo S. Martins, pastora da Igreja Internacional da Graça de Deus em Caratinga (MG)

Sobre a questão de piercings e tatuagens, ela explica que a ordem dada em Levíticos 19:28 era voltada para o povo de Israel, e não há nenhuma outra passagem bíblica, além da lei mosaica, que veta tal prática.

“São proibições apenas do Velho Testamento, não sendo mais comuns na Nova Aliança. Porém, deve-se levar em consideração algumas questões. A Bíblia não me proíbe de fazer tatuagens ou usar piercings ou alargadores, mas é conveniente fazer? Vai me trazer edificação?”, indaga.

Sobre a questão das vestes, que tanto é discutida entre as diferentes denominações, Eristelia observa que, por um longo tempo, um grupo de pregadores, por zelo ou por falta de conhecimento teológico, ensinou mais sobre usos e costumes do que propriamente sobre o Livro Sagrado.

“Isso acabou despertando nas pessoas um interesse maior por usos e costumes do que pelo aprendizado bíblico. Essa falta de conhecimento bíblico é que gera tanto apego a detalhes superficiais. Infelizmente a Igreja tem uma certa preguiça em conhecer as Escrituras. Muitos são levados apenas pelo que ouvem, não tendo o cuidado de buscar respaldo na Palavra”, lamenta.


A igreja no mundo ou o mundo na igreja?
Convidado pela Comunhão, o consultor Volney Faustini

Convidado pela Comunhão, o consultor Volney Faustini traçou um quadro sobre as gerações e o modo como elas se relacionam dentro da Igreja evangélica nos dias atuais. Interessado nos assuntos referentes às tão faladas gerações X, Y e Z, ele traça uma análise sobre a comunidade cristã e destaca como as diferentes identidades consigam coexistir num ambiente tão plural.

Quais as principais características das gerações X, Y e Z? As gerações brasileiras são únicas e exclusivas, pois recebem influência de seus pais no contexto da sociedade em que vivem. Ao identificar as nossas próprias gerações, percebemos traços distintos entre os grupos etários.

 

A geração Colaborativa (aqueles com menos de 11 anos) ainda está em formação e ao final será a segunda maior de nossa história (considerando os que ainda irão nascer até 2028), formando um grupo de quase 70 milhões de brasileiros.

Os Globalizados (entre 12 e 31 anos) são os jovens de hoje – idealistas, visionários e otimistas quanto ao futuro. São 74 milhões de brasileiros, o que dá mais de um terço da população.

Os Caras Pintadas (entre 32 e 50 anos) são os adultos de hoje que cresceram na ditadura e testemunharam a abertura e redemocratização do país.

Os Bossa Nova (entre 51 e 70) são saudosistas e ao mesmo tempo se encantam como admirável mundo novo da tecnologia e da modernidade.

Os Revolucionados (entre 71 e 90 anos) têm força de vontade, são implacáveis em seus desejos e vontades e radicais. Estiveram no comando do país nos últimos 34 anos.

A geração Modernidade (com mais de 91 anos) acompanhou as grandes mudanças do nosso país. Em seu modo visionário, geração ajudou a dar sentido de pátria para os demais 208 milhões de brasileiros.

A Igreja, de forma geral, sabe conversar com essas gerações?

Para os que estão na liderança e têm responsabilidade com o crescimento e a vitalidade institucional, há pelo menos três paradigmas a enfrentar. O primeiro deles é da própria juventude – sua rebeldia, questionamentos e arrogância. São críticos em relação às armadilhas do consumismo desenfreado. O segundo fator é o novo mundo digital em que nasceram. Estão conectados em rede e assim acessam as facilidades de aplicativos e recursos disponíveis na internet. E o terceiro fator pode ser descrito como o mundo líquido, ou a modernidade líquida, herança do predomínio de uma mentalidade pós-moderna que ampliou a permissividade, os relacionamentos frágeis e a desvalorização de compromissos.

Acredita que, com o passar dos tempos, certos usos e costumes impostos pelas igrejas ainda vão se encaixar na atual sociedade, como proibir prática de esporte ou corte de cabelo?

Li recentemente que estão pensando em voltar ao século 19. É um artifício perigoso e incoerente impor regras de costumes e práticas. Tudo que é externo e não lida com o interior é enganador e atenta à saúde física e espiritual.

Como analisa a mudança do posicionamento das igrejas nas eleições do ano passado? A que se dá essa maior mobilização?

Infelizmente o país atravessou um período de exageros de um lado, aberta e frontalmente contrário a valores e princípios do Reino. No entanto, em vez de construirmos, acabamos reagindo. E isso não é bom. A motivação de se engajar politicamente deve ter sua origem no chamado bíblico de ser sal e luz, e não por uma forma reativa. O Brasil inteiro se mobilizou. E assim alguns líderes desempenharam papel decisivo, influenciando e ao mesmo tempo aterrorizando o rebanho. Esse exagero pode ser bem explicado, mas não justifica.

Esta matéria é uma republicação exibida na Revista Comunhão – Junho/2019, produzida pelo jornalista Rafael Ramos e atualizada em 2021 (Priscilla Cerqueira). Fatos, comentários e opiniões contidos no texto se referem à época em que a matéria foi originalmente escrita.

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