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quinta-feira, 2 maio 2024

Femi-mi-mi-nistas

Desde os anos 70, a teologia recebe contribuições de teólogas brasileiras que estudam a presença do feminino em suas linhas e entrelinhas

Por Lidice Meyer Pinto Ribeiro

É verdade que precisamos reler a Bíblia sem o viés androcêntrico. É verdade que nos acostumamos a ler as histórias da Bíblia sempre valorizando os personagens masculinos e menos os femininos. Afinal, Abraão é o pai da fé, o povo formado é o povo de Israel, Jesus chamou 12 discípulos homens e assim por diante. Só que esta leitura afeta totalmente nossa percepção da presença e importância das mulheres na narrativa bíblica.

É verdade também que muitas palavras e expressões dos textos bíblicos ao serem traduzidas do hebraico, aramaico ou grego para o português mudam de forma e gênero. Por exemplo a tradução literal de Gênesis 1:27 seria “Criou Deus, pois, a humanidade (adam) à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem (ish) e mulher (ishá) os criou”.

Mas nas versões mais utilizadas nas igrejas lemos: “Criou Deus, pois, o homem à sua imagem…” (atualizada) e “E criou Deus o homem à sua imagem…” (corrigida e NVI). Na versão Linguagem de Hoje, porém, encontramos: “Assim criou Deus os seres humanos; ele os criou parecidos com Deus.” Da mesma forma, é comum que as traduções de termos no plural em português tenham o gênero masculino. Assim, termos plurais como “discípulos” podem incluir homens e mulheres e “homens” pode significar humanidade (portanto, mulheres incluídas) e quando se refere a “todos” podem incluir também mulheres no grupo.

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Um bom exemplo é encontrado em Atos 2.1: “Estavam todos reunidos no mesmo lugar”, onde o ‘todos’ inclui “as mulheres, com Maria, mãe de Jesus” (Atos 1.14).
Mas daí a concluir-se que a Bíblia é misógina ou escrita dentro de parâmetros patriarcais e androcêntricos, há uma grande diferença! Sim, a leitura androcêntrica da Bíblia tem causado muitos males à Igreja, sobretudo às mulheres, sendo-lhes negado muitas vezes o direito à fala, à participação integral nos ministérios e sacramentos e até mesmo a imago Dei.

Desde a década de 70 a teologia tem recebido contribuições valiosíssimas de teólogas brasileiras que se dedicaram a estudar hermeneuticamente os textos bíblicos, revelando a presença oculta do feminino em suas linhas e entrelinhas. Após os anos 90 a teologia feminista passou a se dedicar também a outros assuntos, abraçando causas sociais e de minorias. Hoje não existe uma teologia feminista una. Existem teólogas que se dedicam a causas diversas.

Por haver uma infinidade de abordagens gerou-se uma confusão no entendimento de seus escritos. Termos e expressões como “patriarcado”, “androcêntrico”, “misoginia”, “sexista”, “dominação-submissão”, “opressão”, “igualitarismo” aparecem desconexos como que misturados ao acaso em textos na internet. Textos bíblicos são lidos e interpretados dentro de uma perspectiva de opressão e violência masculina sobre a mulher, apagando a beleza da Bíblia. Aquilo que era a luta inicial, de se resgatar a presença do feminino na Bíblia acaba por muitas vezes por se tornar o oposto e ressaltando a presença masculina sob a forma de dominação.

Criou-se um verdadeiro mi-mi-mi nas redes, onde há mais interesse em se lamentar o silenciamento e a censura existente em certas igrejas do que estudar suas bases para discutir o assunto em igualdade de conhecimento, dando-se mais peso à postagem que mostra como as “pobres mulheres” eram subjugadas no Israel bíblico ou sob o domínio romano. A falta de conhecimento teológico e sócio-antropológico tem levado muitas mulheres a engrossar a fileira de “seguidoras” destas “influencers” que se colocam como arautas do combate “à opressão do patriarcado androcêntrico sexista e hierárquico”.

Por outro lado, a associação de algumas teólogas feministas às lutas sociais opostas às defendidas pela Igreja levou a estigmatização dos materiais gerados por teólogas em geral (feministas ou não) e a sua excomunhão de algumas igrejas. Isso para não falar da má qualidade de alguns materiais publicados (na maioria estrangeiros) que pelo conteúdo simplório não contribuem para o amadurecimento e ainda fortalecem a ideia de que mulheres não produzem bons textos teológicos.

É essencial distinguirmos entre o movimento a favor da igualdade das mulheres dentro da igreja com bases bíblicas e os movimentos vários ligados ao feminismo. A teologia feminista trouxe muitos benefícios a Igreja mostrando os males do androcentrismo e da leitura misógina na Bíblia, abrindo a discussão para uma Igreja mais inclusiva e mais próxima da imagem de Deus. Talvez tenha chegado a hora de uma reforma da Teologia Feminista, separando o trigo das boas teólogas do joio do mi-mi-mi desconexo e negativo.

Lidice Meyer Pinto Ribeiro é Antropóloga Bíblica, Doutora em Antropologia, Professora no Mestrado em Ciência das Religiões na Universidade Lusófona, Lisboa-Portugal.

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