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quarta-feira, 1 maio 2024

O esquecido poema inédito de Drummond

Considerado um dos um dos maiores poetas brasileiros do século XX, Carlos Drummond de Andrade representa a segunda geração Modernista, com textos que questionam a existência humana. Foto: Reprodução Grupo Record

Descoberto dentro de um gabinete pastoral, no Rio de Janeiro, o texto homenageia uma enfermeira cristã que cuidou do poeta em sua velhice.

Por Cristiano Stefenoni

Ali está ele, emoldurado, solitário e pendurado em uma parede no gabinete pastoral do pastor Martinho Lutero Semblano, da Igreja de Nova Vida da Tijuca, Rio de Janeiro: um poema inédito do gênio da literatura brasileira Carlos Drummond de Andrade. Mas o que essa raridade estaria fazendo ali? A quem foi dedicado? Qual o conteúdo? É original?

A descoberta foi feita por um apaixonado pela linguística, o pastor Josué Ebenézer de Sousa Soares, da Comunidade Batista Atos 2 de Nova Friburgo (RJ), que também é poeta, jornalista, escritor e membro da Academia Evangélica de Letras do Brasil (AELB). Ele conta que tudo aconteceu meio que por acaso.

“Estava ocorrendo uma recepção festiva aos acadêmicos da AELB, na Igreja de Nova Vida, quando vi o poema afixado na parede do gabinete pastoral do meu amigo pastor Semblano. Não resisti. Registrei em fotografias o achado. Minha reação foi de encantamento, ao ver e ler um poema inédito de Drummond. Ali estava, à minha frente, o poema ‘A Olga’, lembra Ebenézer.

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Mas afinal, quem seria essa Olga a quem o poeta dedicou um texto especial para ela? Ao contrário do que muita gente pensava, não se tratava da sua prima Olga Savary, também poeta, e que Drummond considerava como a sua “musa”, a quem já tinha dedicado outros textos e, segundo o jornalista Álvaro Alves de Faria, que escreveu um livro sobre ela, era conhecida como a “Mona Lisa de Copacabana”.

O fato é que, após uma visita pastoral, o mistério foi esclarecido. Descobriu-se que se tratava de Olga Teixeira (1930-2018), enfermeira cristã que cuidava de Drummond no Rio, visitando-o constantemente em seus cuidados no lar (quando já não podia se deslocar com facilidade), apoiando as cuidadoras dele.

Durante muito tempo, a enfermeira Olga frequentou a igreja Metodista, mas nos últimos anos de sua vida, ela passou a fazer parte da Igreja de Nova Vida, que é cuidada pelo pastor Semblano. Em uma de suas visitas pastorais à casa dela, ele viu o poema de Drummond e soube da história. Então, um dia ela o deu de presente ao pastor, que emoldurou e colocou em exposição em seu gabinete na igreja.

“São duas ‘Olgas’ e dois amores. O amor de Drummond por Olga Savary, ao que tudo indicava, era Eros (apaixonado). Já o amor de Olga Teixeira por Drummond era Ágape (desinteressado, de ajudar o próximo). Em sua dedicação como enfermeira e cuidadora do poeta, por longos anos, ela cumpriu os mandamentos, dos quais não há maior: ‘amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo’ (Mateus 22:37,39)”, explica o pastor Ebenézer.

Testes comprovam autenticidade

Após descobrir de quem se tratava, era hora de comprovar se o poema esquecido de Drummond era realmente original. Nesse caso foram avaliados o estilo de linguagem e a veracidade da assinatura no poema.

“O lirismo está presente nesse poema inédito do poeta. Fica claro que a louvação que Drummond faz da árvore, na qual ele enxerga uma doação, uma dádiva. Olga tem caráter de árvore que não vive só para si, mas também para quem dela precise. Ela foi importante em sua vida e é alvo de sua gratidão”, justifica Ebenézer.

Sobre a assinatura do poeta, o pastor disse que foram analisados o estilo e a forma da grafia e comparados por especialistas com outras assinaturas do poeta. Em novembro de 2015, a então estudante da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Mayra Fontebasso, descobriu poemas inéditos de Carlos Drummond de Andrade, publicados na revista Raça. Na ocasião, um dos motivos que a fez questionar a veracidade dos textos encontrados era exatamente a assinatura, diferente da forma que o poeta costumava assinar.

“Entretanto, embora também assine apenas como Carlos Drummond, o poema ‘A Olga’ traz de fato a grafia do poeta com sua assinatura, coisa que não ocorreu com os poemas publicados na revista Raça, onde somente os tipos móveis identificavam a autoria de Drummond. Assim sendo, não resta qualquer dúvida sobre a autoria drummondiana. O estilo e a assinatura comprovam isso”, afirma Ebenézer.

A árvore como símbolo de amor abnegado

O poema inédito esquecido de Drummond, A Olga, que pode ser conferido ao final dessa reportagem, é uma comparação da árvore – que oferece frutos, sombra, caule, sem exigir nada em troca – ao amor abnegado da enfermeira cristã que cuidou dele em sua velhice. O pastor Ebenézer, que também é um especialista em gêneros literários, aponta vários pontos interessantes na forma que o poeta escolheu para agradecer a sua cuidadora.

“‘O que dá beleza à árvore’ vai abrindo estrofes e também caminhos de compreensão do que o poeta quer dizer. Ele molda a estrutura do poema com essa figura de sintaxe, a anáfora, que é uma figura de construção. E Drummond vai construindo o perfil de sua Olga, a partir da beleza que ele enxerga na árvore: os frutos maduros recolhidos pelo caminhante; a sombra que oferece refrigério no calor abrasado da vida; os pássaros abrigados que oferecem música e dança à trajetória; o coração que pulsa amor e poesia. E, aqui, nessa última analogia, ele humaniza a árvore, a quem chama de Olga”, explica Ebenézer.

Quem foi Carlos Drummond de Andrade

Considerado um dos um dos maiores poetas brasileiros do século XX, Carlos Drummond de Andrade (1902–1987) nasceu em Itabira de Mato Dentro, interior de Minas Gerais. Ele representa a segunda geração Modernista, com textos que questionam a existência humana.

Drummond se formou em Farmácia, deu aulas de português e geografia, foi cronista, contista, ficcionista, tradutor, redator no Diário de Minas, escreveu para o Correio da Manhã e o Jornal do Brasil.

Ainda foi servidor público, tendo atuado como como auxiliar de gabinete da Secretaria do Interior, chefe de gabinete do ministro da Educação, Gustavo Capanema, e funcionário do Serviço Histórico e Artístico Nacional. Casou-se com Dolores Dutra de Morais e foi pai de Maria Julieta Drummond de Andrade e de Carlos Flávio Drummond de Andrade. O poeta morreu no dia 17 de agosto de 1987, no Rio de Janeiro.

O poema A Olga

Alguém me disse, baixinho: “Sou como a
árvore infrutífera, que não serve para nada…”

O que dá beleza à árvore
não são apenas os frutos
que o caminhante colhe e passa,
nem se lembrando mais onde os colheu,
os frutos que amadurecem e caem
no chão de poeira e esquecimento,
os frutos às vezes ácidos ou venenosos.

As árvores sem frutos nem por isto
são menos belas do que as outras.

O que dá beleza à árvore
é também a sombra que ela espalha em redor,
mesmo quando o caminho está deserto,
e na brasa do dia vai criando
uma ilha de sonho e de doçura.

O que dá beleza à árvore
são ainda os pássaros que ela abriga sem esperar
que eles fiquem eternamente em seus ramos
a enchê-los de música e de dança.

O que dá beleza à árvore
é principalmente o seu coração invisível
que muito poucos adivinham, mas pulsa
de amor e de poesia.

Poesia e amor não esperam retribuição.
Vivem por si, para quem saiba
penetrar o sentido profundo da vida
e da árvore.

O coração da árvore é bondade
infinita, entre a raiz e o ar.

Em seu silêncio manso, a árvore ensina
a pura arte de amar.

Carlos Drummond

O original do poema A Olga

O esquecido poema inédito de Drummond

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