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quinta-feira, 2 maio 2024

Projeto Agostinhas – Combate ao racismo à luz do Evangelho

Foto: Reprodução

O Projeto Agostinhas é uma iniciativa de mulheres cristãs que se dispuseram a conversar sobre o racismo e a igreja. O grupo constrói trajetória de extrema importância nesse debate

Por Carolina Leão

Projeto Agostinhas – Combate ao racismo à luz do Evangelho
Integrantes do Projeto Agostinhas. Foto: Reprodução Redes socais 

Você conhece o livro “A religião mais negra do Brasil”? De autoria de Marco Davi de Oliveira, a leitura expõe que a religião com o maior número de negros não são as religiões de origem africana, mas os pentecostais. Essa realidade reforça o quanto é importante se falar sobre racismo no meio evangélico. A luta contra o racismo não é recente. Em busca de combater essa prática, uma das formas de contribuir para isso é com a fomentação de debates. 

Em busca de fomentar a discussão e o combate ao racismo sob à luz do Evangelho é que surgiu o Projeto Agostinhas: um projeto de mulheres cristãs que se dedicam a falar sobre o racismo e a igreja e tem construído uma trajetória de extrema importância nesse debate.

Para conhecer melhor sobre o Projeto Agostinhas e o tema “racismo e a igreja”, leia a entrevista abaixo, realizada com as integrantes do grupo: Ana Bezerra, Flora Ngunga e Katia Nunes.

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Comunhão: Qual a história do projeto Agostinhas?

O nosso grupo nasceu como um grupo de Whatsapp para compartilhar nossas ideias e desabafos sobre racismo e nosso mundo cristão evangélico. Era muito legal, inclusive ainda existe o mesmo grupo desde sua fundação no Whatsapp, dia 29 de dezembro de 2019! Iza Vicente criou e colocou a Ana Bezerra e Millie Kathleen (que agora é mamãezinha muito fofa!).

Nosso intuito era ser um grupo de “pretinhas crentes”, nas próprias palavras da Iza Vicente. Começamos a pensar em fazer algumas lives e posts nas nossas próprias redes sociais sem nada de oficial, até que em Abril de 2020 chamamos a Jacira Monteiro (autora do livro “O estigma da Cor), a Flora entrou (Missionária da Base Avalanche em questões raciais) em Junho do mesmo ano e logo em seguida a Ana Staut (autora do livro “Fortes e Fracos”) também entrou. A criação da página foi uma ideia relâmpago que para a nossa surpresa deu mais certo do que pensávamos! Dia 17 de Junho abrimos nossas redes sociais e começamos “com o propósito de fomentar a discussão e o combate ao racismo sob a luz do Evangelho”. Ficamos maravilhadas com o acolhimento na rede de nossa ideia, muitas mulheres se identificaram com a gente, e iniciamos com uma programação intensa de lives, textos, postagens e participações virtuais em diversos eventos.

No final de 2020, decidimos abrir o nosso projeto para colaboradoras e colaboradores; esse passo foi uma mudança para melhor do projeto. Conhecemos pessoas maravilhosas que contribuíram e ainda contribuem demais para nossos conteúdos e nos aproximamos de Kátia Nunes que hoje também faz parte da equipe de Membros do projeto. Nessa época redigimos um estatuto e uma confissão de fé, por isso pensamos que a entrada dos colaboradores foi realmente um passo muito importante para nosso amadurecimento.

Qual o propósito principal do projeto?

Nosso propósito inicial foi o de fomentar a discussão da questão racial em conjunto com as Escrituras e com boa teologia. Continuamos com nosso propósito firme e forte, e amadurecemos nossas ideias principalmente do ponto de vista teológico com diversos estudos que fizemos ao longo do tempo. Conhecemos o Dr. Esau McCaulley (especialista em Novo Testamento, autor do livro “Uma Leitura Negra”), Dra. Wil Gafney (especialista em Bíblia Hebraica), Lisa Victoria (Fundadora do Jude3Project em que nos inspiramos muito), Rev. Dra. Angela N. Parker (Novo Testamento e autora do livro  “If God Stll Breathes, Why Can’t I?”, Jasmine Holmes, dentre tantos outros. Nossa inspiração sempre foi encontrar gente boa pelo Brasil e pelo mundo em sua área de especialidade para falar com propriedade de Racismo e Fé Cristã.

Por que foi escolhido esse nome?

O nome um pouco como o nascimento do projeto foi um pouco por acaso, sabíamos vagamente que Agostinho era africano e deixamos esse nome para aquele grupo de Whatsapp inicial. Com o tempo fomos nos informar melhor, e descobrimos que temos uma identificação muito grande com essa grande figura do cristianismo mundial. Um homem africano, estrangeiro em seu próprio império (Império Romano), amante de Deus e cuja fé lhe foi transmitida pela mãe africana. Como isso pode não ter mais a ver com o Brasil? Um país onde a maioria das mulheres cristãs são negras, e todo mundo já recebeu uma lição valiosa de vida e de fé de sua mãe, tia, avó ou vizinha crente.

O Projeto Agostinhas é voltado somente para mulheres?

O Projeto é formado por mulheres negras, porém é um projeto para todos. Nós falamos para homens, mulheres, adolescentes, jovens, idosos, adultos no geral. Nós temos colaboradores do sexo masculino no nosso time de apoio. O único diferencial do projeto é que ele é feito por mãos de mulheres negras.

Como vocês acreditam que a Bíblia pode ajudar no combate ao racismo?

A bíblia carrega algo vital que é o evangelho. A narrativa contada pela bíblia carrega elementos fundamentais para confrontarmos a cultura caída e os ídolos da nossa geração. O racismo é, sem dúvida, um ídolo que tem feito morada no coração do ser humano há mais tempo do que imaginamos. E o evangelho carrega verdades que constrangem o cristão a confrontar as questões sociais à sua volta, inclusive o RACISMO. O evangelho ataca as mentiras absorvidas por um coração racista. É a bíblia que conta para nós, cristãos, que fazemos parte de uma comunidade multicultural de um reino que é e há de vir. E essa identidade que a bíblia nos traz, de que fazemos parte de “uma grande multidão, que ninguém pode contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas” (Ap. 7:9) já nos coloca em movimento nesse mundo ainda não plenamente redimido.

Nós não nos conformamos com o padrão desse mundo, não nos conformamos com as injustiças, não nos conformamos com a  cultura que diminui uma raça em detrimento da outra, uma cultura que inferioriza um tom de pele, uma textura de cabelo, um traço físico. Isso tudo a bíblia condena! E esse entendimento tem que renovar o nosso pensamento e transformar a forma como eu me relaciono com o meu próximo e com a terra.

Como a igreja (enquanto pessoas de todas as religiões) deve agir diante do racismo, à luz da Bíblia?

Se a Igreja tem consciência de que Deus foi intencional ao criar tons de pele diferentes, traços e texturas, a igreja sabe que é do agrado de Deus que povos e línguas distintas o adorem juntos. Então, a igreja tem que ser intencional. Para onde iremos nós? Com quem iremos? Iremos sozinhos? A história que Deus está contando, sobre o povo que habitará a cidade de Jerusalém, não é uma história que acontecerá com um passe de mágica, da noite pro dia. Deus já começou a contar a história, ele já começou a reunir o seu povo. Cabe a nós aceitarmos a tarefa que Ester (personagem da bíblia) recebeu.

A figura de Ester pode servir de analogia para uma igreja que olha sua realidade local, sua cultura local, o racismo, e procura saber quais passos tomar. Temos que olhar ao nosso redor e vermos onde Deus nos plantou e procurar intencionalmente fazer o que os nossos braços alcançam. Existem muitos passos que igrejas, líderes, membros podem tomar em direção a unidade na diversidade. Passos que podem variar de local para local. Cremos que uma vez que nos dispomos e reconhecemos a necessidade, Deus vai nos mostrando caminhos.

Vocês percebem que as igrejas tradicionais ainda enfrentam distanciamento com relação aos estilos blacks? (roupas, penteados, etc). Se sim, como contribuir para mudar isso?

O mundo tem experimentado há alguns anos um movimento social, pelo qual mulheres estão dizendo NÃO à ditadura dos produtos químicos e dizendo SIM ao “natural”. Em outras palavras, estão olhando para Gênesis 1: 31 e concordando com o Deus que viu tudo quanto tinha feito e disse: Isso é muito bom. Não somente os céus, os mares, mas também o homem. O homem negro, asiático, branco,  indígena, etc, com seus tons, traços e texturas. A cultura do mundo converteu a humanidade em uma só. Então, não é novidade que ainda em igrejas desse século, existam pessoas que veem o mundo ainda como se fosse monocromático. Pessoas que não enxergam a multiforme graça de Deus nas pessoas. O primeiro passo é começar a se falar sobre isso dentro das igrejas. Isso tem que ser um assunto que faz parte da agenda da igreja. Se Deus tem algo a falar sobre, a igreja também tem. Pois a igreja é representante do caráter de Deus na terra. O espírito do Senhor que repousou sobre o rebento do tronco de Jessé, o rebento que não julga pelo que vê, mas, sim com justiça e com equidade.

É esse espírito que tem que nortear o nosso olhar. Então, soa até repetitivo, é necessário pregar-se sobre essa realidade e clamar por redenção. Redimir o pensamento equivocado de que existe somente um jeito de ser, um jeito de existir para ter valor. Deus vê valor na diversidade da igreja e o objetivo maior é que tribos diferentes convivam e se respeitem. Líderes de igrejas têm que fomentar esse tipo de visão. Membros dentro e fora da igreja precisam ser intencionais em seus relacionamentos e cultivar amizades com pessoas diferentes, pois isso vai refletir cedo ou tarde na organização da igreja também.

Qual a opinião de vocês sobre a imagem de um “Jesus branco” que tanto aparece em filmes e exposições de quadros? Como podemos ser mais críticos quanto a isso?

É interessante que muitas vezes quando se representa alguém conhecido do passado como negro, ou como de pele escura, alguns acusam de “revisionismo histórico” o que está se fazendo, eu chamaria mais de “retrato honesto da história”. Na verdade, revisionistas foram os pintores, artistas do passado que apagaram traços étnicos de algumas pessoas que evidentemente não eram brancas. No caso de Jesus, que era um homem judeu, parece-nos apropriado que seja representado como ele possivelmente poderia ser. Será que esse embranquecimento foi proposital? Podem existir duas razões possíveis para o embranquecimento:

  1. O primeiro é que tendemos a nos espelhar na arte, tendemos a nos representar na arte;
  2. O segundo é que existe uma mentalidade comum no Ocidente pós-escravidão negra (não somente) que leva a ser mais difícil no próprio imaginário dos artistas a possibilidade de representar uma pessoa de pele negra como alguém relevante e importante.

Jesus era um homem judeu, Deus escolheu encarnar em uma etnia, em uma cultura e em um tempo. A encarnação de Jesus nos aponta para a nossa esperança: nós não somos como somos por acaso, essas características contingentes (cor da nossa pele, textura do nosso cabelo, cultura) nos acompanharão para sempre e faríamos bem em começar a celebrá-las em vez de buscar uma uniformização que não tem nenhum respaldo bíblico.

Podemos dizer que ainda existe uma “demonização” das religiões de matrizes africanas?

Existe sim. As religiões de matrizes africanas possuem uma fusão de caráter religioso, cultural e etc, e, portanto, existem elementos que remetem elementos de diferentes culturas, sendo uma delas a cultura afro-brasileira. É provável que muitos brasileiros acabem por abominar tais religiões devido a presença desses elementos. Cremos que o papel do cristão, primeiramente, seja o de respeitar qualquer ser humano que professa a fé X e Y. Não é sobre concordar ou não com a religião A ou B. É sobre ver o outro que pensa e professa uma fé diferente da minha como um ser que está sob a graça comum de Deus e que possui a imagem de Deus nele.

As pessoas entram em brigas incansáveis para provar qual religião é digna ou não de respeito, ou a religião que torna x ou y digno de respeito. Não cabe a nós isso. Um outro tema que pode expandir essa pergunta é a divisão das mitologias aceitáveis as não aceitáveis: mitologia africana, mitologia nórdica, grega, asteca. Somente as narrativas mitológicas europeias são vistas como dignas de serem lidas ou representadas na tv, as mitologias africanas são demonizadas. Existe uma régua injusta nesse diálogo, que abre espaço para um preconceito étnico, racial. Ou tudo é pagão e inaceitável, ou tudo pode passar por um filtro e ser reaproveitado de um jeito ou de outro. A questão africana, negra, na imaginação do mundo ainda é injusta.

Qual mensagem vocês deixariam para uma mulher negra que sofreu racismo na igreja?

Você não está sozinha. O racismo é inaceitável em qualquer ambiente, mas na igreja ele deve ser tratado tanto como pecado e também como crime e ser combatido a rigor. Nosso conselho é que procure as lideranças eclesiásticas para ser tratado e denunciado às autoridades e também para que sejam tomadas medidas preventivas contra futuros episódios de racismo, a chance de ser exemplo para outras mulheres é grande e isso pode gerar uma mudança significativa na sua comunidade. É possível que a mulher negra cristã possa ser uma voz importante na igreja, incentivando o diálogo e a reflexão sobre o racismo e liderando por exemplo na luta contra ele. Juntos, podemos fazer a diferença e construir uma igreja mais inclusiva e justa.

Procure ajuda emocional, situações como esta podem ferir profundamente nossos corações.

Dietrich Bonhoeffer diz “Onde não há justiça, não há amor; e onde não há amor, não há Deus.”

“O Senhor está perto dos que têm o coração quebrantado e salva os de espírito abatido.” – Salmos 34:18

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