Fazer discípulos é muito diferente de angariar views e likes. É uma ordenança do próprio Cristo e exige um processo contínuo, intencional e relacional
Por Patrícia Scott
Discípulos ou seguidores? Em tempos de redes sociais, compartilhamentos e visualizações são bastante valorizados e desejados. Não só os influenciadores digitais, mas quase todo mundo busca ser visto, ouvido e admirado. Desfrutar de popularidade e, se possível, monetizar seus conteúdos, já que as plataformas digitais possibilitam ganhos financeiros.
Um estudo recente realizado pela Nielsen revela que o Brasil é o país dos influenciadores. Existem 500 mil deles com ao menos 10 mil seguidores espalhados pelas diversas plataformas. De outro lado, um levantamento das agências Hootsuite e We Are Social posiciona o Brasil como o segundo país que mais segue influenciadores (44,3% dos usuários da internet), atrás das Filipinas (51,4%), mas à frente de todas as outras nações emergentes.
O mesmo estudo aponta que, no país, o Whatsapp reúne 165 milhões de usuários, o YouTube conta com 138 milhões, o Instagram tem 122 milhões, o Facebook contabiliza 116 milhões, e o TikTok, 73,5 milhões. Diante desse contexto, não é de se estranhar que o Brasil ocupe o terceiro lugar mundial no tempo gasto em redes sociais, com os usuários dedicando às telas em média 3h37, diariamente, conforme o “Relatório Digital 2024: 5 Billion Social Media Users”, publicado em parceria entre We Are Social e Meltwater.
O mesmo relatório aponta ainda que o Brasil é o segundo país em que os usuários passam mais tempo on-line, com média de 9h13, atrás apenas da África do Sul, com 9h24. Outro dado que chama a atenção: no país, as pessoas passam aproximadamente 16 horas do dia acordadas. No entanto, mais da metade desse tempo (56,6%) é destinado ao uso de smartphones e computadores, revela o levantamento da plataforma Electronics Hub, um site de informações eletrônicas, a partir da pesquisa “Digital 2023: Global Overview Report” da DataReportal, que considerou 45 nações.
Interesses compartilhados
Todas essas informações mostram que a internet desempenha um papel significativo na vida diária dos brasileiros, que passam grande parte do tempo dedicados às atividades on-line. Nesse sentido, John Dempsey, da Wieden+Kennedy, e Krystel Watler, do TikTok, “anunciaram” o fim das redes sociais como são conhecidas atualmente, inaugurando uma nova abordagem, centrada nos interesses compartilhados.
Eles delinearam seis estratégias a serem desenvolvidas. Uma delas é criar conteúdo que provoque respostas. “Ao desenvolver conteúdo que ressoe com os interesses e valores de uma subcultura específica, surge oportunidade de se integrar organicamente às conversas em andamento, estabelecendo conexões mais autênticas e duradouras com o público-alvo”, detalham e acrescentam: “Ao serem sensíveis e receptivas às nuances culturais, é possível criar um ambiente propício para o engajamento genuíno e construtivo, fortalecendo, assim, a presença e relevância”.
Presença e relevância são duas palavras-chaves quando se trata da propagação do Evangelho, tendo em vista que o “Ide” ordenado por Jesus envolve relacionamento focado na transformação de vidas, que engloba crescimento e amadurecimento espiritual. Assim, as Sagradas Escrituras exortam: “Portanto ide, fazei discípulos de todas as nações. […] Ensinando-os a guardar todas as coisas que eu vos tenho mandado” (Mateus 28.19,20).
Grande Comissão
“A origem do discipulado, do ponto de vista bíblico, é Jesus e seus discípulos, e a essência é a Grande Comissão de Cristo”, explica Josué Campanhã, que é autor do livro “Discipulado Que Transforma”. Segundo ele, talvez o maior significado do discipulado a partir do mandamento de Jesus seja a formação de “pequenos Cristos”. “Cada pessoa tornar-se mais parecida com Jesus no caráter, integridade, passos, forma de pensar e agir”.
Campanhã afirma que o conceito popular de discípulo é aquele que imita seu mestre. No entanto, de acordo com a Bíblia, “é muito mais do que uma imitação, é fazer o que Paulo falou: ‘Já não sou eu quem vive, mas é Cristo que vive em mim’ (Gálatas 2.20)”. Sendo assim, ele expõe que é possível seguir alguém, pessoalmente ou nas redes sociais, mas jamais fazer o que essa pessoa diz. “Seguidor não significa imitador. O discípulo é aquele que intencionalmente deseja ser como Jesus e fazer tudo o que Ele mandou”.
Por isso, o discipulado objetiva tornar uma pessoa cada vez mais próxima de ser 100% parecida com Jesus. “É alguém olhar para você e dizer que está vendo os atos, falas e personalidade de Jesus em sua vida”, observa Campanhã. “O papel do discipulador é ser parecido com Jesus para ser um exemplo físico e próximo de Jesus para as pessoas que está discipulando”, complementa.
Josué lembra que é comum a utilização carinhosa da expressão ‘meus discípulos’. No entanto, na verdade, ninguém faz discípulos para si, mas, sim, para Cristo. “Este é o papel do discipulador, imitar Jesus para que outros também imitem o Mestre”. Já o discípulo é alguém que olha para Jesus e permite que o Espírito Santo trabalhe em sua vida para que se torne cada vez mais como Jesus.
“Sua referência é a pessoa mais próxima dele que já é um discípulo de Jesus e em quem ele pode se inspirar”, ressalta Campanhã. O pastor conclui: “Além disto, o discipulado de Jesus envolve – relacionamento, ensino vivencial e não apenas teórico, transparência, vulnerabilidade, caminhada de longo prazo e não apenas aulas, jornada”.
Processo intencional
No Brasil, o discipulado voltou a ser alvo de atenção nas últimas duas décadas. Entretanto, apesar de muitos líderes e pastores estarem interessados nesse tema, poucos sabem exatamente o que é o discipulado e como criar uma cultura de discipulado na igreja, opina o teólogo Thiago Faria, autor do livro “A Igreja Que Faz Discípulos”. Ele considera que ainda hoje muitos acreditam que o discipulado é apenas um período curto de apresentação das bases do Evangelho, que é feito quando a pessoa se converte.
Entretanto, o discipulado é muito mais que isso, diz Thiago, é o caminho de seguir a Jesus de forma intencional. “Isso exige uma mudança significativa na cultura da igreja: deixar de ser uma igreja movida a atividades e programas, e começar a ser uma igreja focada em um processo estruturado e intencional de levar as pessoas a crescerem na fé, tendo em vista que a base do discipulado de Jesus é relacional, processual, orgânica, individual, em grupo, contínua, vivencial e feita em amor”.
Assim, Thiago analisa que, quando a igreja tem um processo de discipulado claro e eficaz, as pessoas são estimuladas a se relacionarem, são acompanhadas por outros, são incentivadas a crescerem na fé e a darem passos consistentes de mudança de vida.
“Alguém que vive mudança de vida constante no discipulado e está engajado em fazer outros crescerem na fé dificilmente sairá da igreja”.
Por outro lado, Thiago destaca que a igreja sem o foco no discipulado sofre, porque se torna uma comunidade de pessoas imaturas, desfocadas do seu propósito de vida e sem entender como se cresce na fé. “A falta de discipulado é a principal causa do aumento do número de desigrejados. As pessoas saem da igreja por alguns motivos, mas o principal é que elas não foram envolvidas em um processo de discipulado eficaz, que as acompanha em sua jornada de relacionamento com Deus”.
Missão do cristão
Na visão de Joarês Mendes de Freitas, pastor emérito da 1ª Igreja Batista em Jardim Camburi, Vitória (ES), o discipulado significa ajudar a pessoa a se tornar um seguidor de Cristo, apoiar o seu crescimento em maturidade até que se torne um multiplicador. “O discipulado dá ao crente a oportunidade e a responsabilidade de ver o seu estilo de vida sendo reproduzido por um novo convertido. Isso é inspirador e altamente compensador”.
Dentro dessa perspectiva, o maior impacto do discipulado tem a ver com o crescimento e a estabilidade, aponta Joarês. “O seguidor desiste da jornada com maior facilidade, ao passo que o verdadeiro discípulo permanece no caminho (João 15)”. Assim como o teólogo Thiago, o pastor acredita que se o discipulado fosse prática comum nas igrejas, não haveria tanta evasão na membresia como se vê atualmente.
“A falta de discipulado, na maioria das igrejas, tem associação com a dificuldade das pessoas em assumir compromissos que demandam certo preço”, avalia Joarês. “Discipulado não é barato. Muita gente hoje está à procura de facilidades e prefere atividades que exijam pouco de si”, argumenta.
Já o pastor Tomás Mackey, presidente da Aliança Batista Mundial, enfatiza que diante de um mundo cheio de problemas e mazelas, o Cristianismo é uma resposta valiosa, justa, amorosa e santa à sociedade contemporânea. “Mesmo imperfeita, a igreja sempre precisa se reformar, corrigir-se e se superar, porém tem uma resposta de esperança em meio aos desafios, diretamente treinando e preparando discípulos. Pessoas que aprendam de Jesus, da Bíblia e dos conteúdos centrais que Cristo quer que Seu povo saiba”.
Ele assevera que existem muitas pessoas e povos, no mundo, para alcançar para Jesus, e o número de cristãos é pequeno em relação à população total. Por isso, Tomás alerta que é preciso investir no discipulado, que não é somente alcançar com o Evangelho, mas é transformar de dentro para fora com o poder de Jesus na vida das pessoas, fazê-las novas criaturas, de maneira que voltem da cultura contemporânea e assumam uma missão na vida que é a de Cristo. “E, como cristãos, viver para refletir sobre a verdade do poder, da graça de Jesus”.
‘Discípulo Radical’
No livro “O Discípulo Radical”, John Stott [1921-2011] explica que o título relembra aos leitores que os primeiros seguidores de Cristo eram chamados “discípulos”. Segundo ele, o termo em si é mais significativo que cristão, já que denota a ideia da existência de um relacionamento entre aluno e professor.
O autor argumenta que o discipulado cristão possui um caráter radical, que exige de cada discípulo um retorno às raízes ou, seja, aos compromissos fundamentais com o Mestre.
Logo, o objetivo de Stott ao ministrar sobre o assunto é conduzir os cristãos a uma reflexão sobre a necessidade de submeter-se radicalmente à autoridade de Cristo.
Stott escreve sobre a necessidade de o discípulo de Cristo tornar-se semelhante ao seu Mestre, “pois semelhança com Cristo é a vontade de Deus para o povo de Deus”. Ele reforça as bases bíblicas para tal afirmação e aponta os principais exemplos de Cristo que os discípulos devem seguir, além de apresentar três consequências práticas acerca da semelhança com Cristo. Para o teólogo, o maior do século XX, “o enchimento com o Espírito Santo é a forma pela qual Deus faz os cristãos se tornarem como Cristo”.
Esta matéria está na Revista Comunhão de número 318, publicada em julho de 2024. Para ler a edição completa, clique aqui!