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sexta-feira, 29 março 2024

Três acordes e meia dúzia de palavras

Tenho o privilégio de dizer que nasci e fui criado na Igreja Presbiteriana de Araguari, em Minas Gerais, onde passei por todas as salas da EBD (Escola Bíblica Dominical). O pano de fundo dos meus primeiros 20 anos – 1963 a 1983 – foram os tempos em que a Igreja Evangélica surgia como nova opção religiosa dentro de um Brasil dominado pelo catolicismo e vivendo uma ditadura militar. Todas as correntes eram contrárias à criatividade, dentro e fora da Igreja, mas lutávamos bravamente contra isso.

Aos 5 anos, eu já fazia viagens missionárias com meus pais. Aos 7, cantava no soprano do coro, fazia teatro e, na Liga Juvenil, participava de acampamentos, eventos especiais e intercâmbios entre igrejas. Nesse tempo, a EBD era criativa, cheia de cartazes coloridos, fantoches, músicas diferentes, brincadeiras saudáveis, histórias de flanelógrafo e o mais importante: professores entusiasmados, que levavam os alunos para passear, conhecer outros lugares, fazer visitas, cantar, ler livros, escrever textos, recitar poesias e promover apresentações artísticas. Na adolescência, fui treinado para dirigir reuniões, conduzir eleições, redigir atas, ministrar palestras e estudos bíblicos, dar avisos e até pregar.

Devido a essa preparação na infância, entrei na mocidade a todo vapor. Fazíamos teatros, esquetes, mímicas, festivais de música, visitávamos os hospitais, as cadeias, pregávamos nas praças, nas escolas, e viajávamos para realizar missões. Paralelamente a tudo isso, surgiam, em estilos variados, coros, solistas, quartetos e trios. Nessa época, a atividade mais rotineira era nos reunirmos para estudar a Bíblia e competirmos quem sabia mais versículos de cor. Cantávamos hinos e corinhos até a voz acabar e as mãos ficarem vermelhas de bater palmas. Não espalhe não, mas vou confessar que fazíamos reuniões de oração “subversivas”, onde Deus falava, e a gente chorava, arrepiava, dançava, ria e falava em línguas. De cada 10 pessoas, oito tocavam violão, e bem. Além disso, tínhamos palestras sobre saúde, política, educação, e promovíamos campeonatos de futebol, vôlei, peteca, cursos, exposições de artesanato e viagens para lazer. Detalhe: essas atividades artísticas e culturais não aconteciam apenas no Natal e na Páscoa. Nosso ano era dinâmico, mas confesso que nos queixávamos da falta de liberdade, afinal, éramos desafiados a criar debaixo de repressão. E isso tudo acontecia em todas as igrejas, não somente na minha.

 Nesse embalo, entrei nos anos 1990 cheio de esperança, pois, finalmente, a Igreja abrira suas portas para todo tipo de manifestação artística, e a ditadura já não existia mais. O livre desenvolvimento artístico, no entanto, durou pouco mais de uma década. Desde os primeiros anos do milênio, uma lama de marasmo vem imobilizando a Igreja até chegar aos dias de hoje, quando, para fazer arte, apenas três acordes e meia dúzia de palavras bastam. Chegamos ao fundo do poço!

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Em qualquer igreja de hoje, a liturgia é idêntica: grupo de louvor cantando as repetitivas músicas seguidas de uma pregação chocha, enfadonha e teologicamente magrinha. A arte, de vez em quando, aparece, mas em baixa qualidade. A verdadeira arte, agora, é privilégio de poucos guetos. Parece que a liberdade que tanto ansiávamos não soube ser aproveitada pela Igreja. Infelizmente, as facilidades da vida moderna, a excessiva liberdade, a internet e a televisão parecem que sugaram a criatividade da Igreja. Ao contrário do que se diz, em termos de diversidade, a Igreja do passado dá de goleada na Igreja do presente. A atual, definitivamente, não sabe utilizar a liberdade que tem e ainda consegue ficar atrás da Igreja que existia há 40 anos. Algo precisa ser feito.

Atilano Muradas é jornalista, teólogo, escritor e compositor. Possui oito CDs gravados e quatro livros publicados pelas editoras Betânia, Vida e Muradas. Em 2004, recebeu o Prêmio Areté. Morou por sete anos nos EUA, onde atuou como pastor, jornalista e músico e, atualmente, reside em Belo Horizonte. É pastor na Igreja Batista Getsêmani, de onde viaja para cumprir agendas de apresentações e palestras no Brasil e no exterior. Site: www.atilanomuradas.com

 

 

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