Se a sociedade for egótica, declinará exposta à radiação de suas ações. Aí reside o perigo quanto ao futuro da humanidade
Por Clovis Rosa Nery
Em Gestalt enfatizamos a awareness. Mas o que isso significa? O homem é gregário. Sem relação, principalmente ontológica, ele é incompleto. O “Eu” sem o próximo perderia seu sentido de realização, pois sua completude ocorre na relação recíproca; porém, a awareness (conscientização) o torna distinto.
É exatamente no contato que se processa a conscientização porque é nele que o fenômeno da percepção emerge, e é notado ou não. O nível de “assimilação” interfere na formação da essência do ser. É por isso que Sartre disse que “a existência precede à essência”.
Cada um de nós existe no mundo a partir do nascimento. A essência é forjada por meio da relação, seja cognitiva, sensória ou ontológica, proporcionalmente ao nível de presença do próprio ser. O mundo, então, é uma escola. Como tal, não há como crescer e se desenvolver nele estando ausente.
A nossa vivência é tributária, a saber, pelo arbítrio assimilamos estímulos construtivos ou destrutivos. Ato contínuo, dependendo de como nos relacionamos com o ambiente, consciente ou inconscientemente, emitimos respostas, e arcamos com as consequências. Por isso, liberdade envolve responsabilidade.
Essa é uma das formas de descrever a questão da lei da semeadura. Por tudo isso, é desnecessário dizer que um diálogo, no sentido pleno, somente ocorre quando os envolvidos estão totalmente presentes. O resultado não será menor, nem igual ou maior que as contribuições individuais, mas diferente.
Nessa reconfiguração do todo há a sinalização de novas possibilidades. Essa é uma das belezas das relações humanas. Contudo, em havendo ruído no diálogo ele deixa de ser pleno, favorecendo o surgimento de um “vírus” sutil, usurpador de consciência e maculador de caráter, que pode entrar em ação. O entrave decorrente é comprometedor.
Nos evangelhos, encontramos várias ocasiões em que os fariseus aproximavam-se de Jesus para tentá-Lo. Espiritualmente doentes eles eram “cegos” orgulhosos. O encontro com o Mestre era uma farsa. Era uma espécie de blefe provido de “manchas” de um caráter egótico e cético.
Como seres em construção, revelamo-nos via contato com o ambiente e, por meio deles, nos construirmos, ou destruirmo-nos. A propósito, o que podemos inferir do caso dos fariseus é que o comportamento deles não era algo isolado, mas a ponta do iceberg revelador de quem eles eram.
Todos nós devemos vigiar e orar para não imitarmos em nosso dia a dia aqueles protagonistas, porque as seduções e os fetiches mundanos, com suas proposituras mirabolantes e tentadoras, proporcionam caminhos brilhantes, largos e espaçosos, mas com um fim trágico.
O que você faz ou não com você é uma questão de atitude, consolidada com escolhas coerentes com os seus princípios. Você tem o livre-arbítrio para construir-se, ou destruir-se. O mundo é como um vagão. A viagem é curta, única e só de ida. Prudência é indispensável.
Se somos gregários, se nosso crescimento ocorre dialogicamente e se a respectiva relação interativa estiver fragilizada, consequentemente, o desenvolvimento humano como um todo experimentará intempéries. Aí reside o perigo quanto ao futuro da humanidade.
Salvo exceções, uma casa dificilmente é demolida abruptamente. O trabalho é feito por etapas. Na sociedade também é assim. Enfraquecendo os laços relacionais, mina-se a sua estrutura e, finalmente, virá a ruína, porque se ela for egótica declinará exposta à radiação de suas ações.
Clovis Rosa Nery é psicólogo, pesquisador e escritor