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sábado, 20 abril 2024

O pastor ideal

O chamado homem de Deus não é alguém sobrenatural – e o pastoreio não é algo simples.

Ao longo de quase quarenta anos – desde que fui ordenado ao pastorado –, tem sido possível observar profundas mudanças em relação àqueles que exercem o ministério da Palavra. Elas não acontecem apenas no perfil dos pastores, como também nas práticas pastorais e até mesmo no modo com que o próprio povo de Deus os tem considerado.

Lembro-me, com saudades, dos primeiros tempos, ainda jovem, ao ver colegas pastores envolvidos com alegria e muita esperança no ministério. Não é este o cenário que, em geral, hoje tenho assistido. O que se observa, e é extremamente preocupante, é a redução da alegria, da autorrealização e da esperança daqueles que ocupam o púlpito. E tal sentimento afeta suas famílias.

Sem dúvida, há muitos pastores que ainda nutrem elevado ideal ministerial. Mas, lamentavelmente, tem havido graves distorções sobre o que seja, de fato, pastorear o que chamamos de rebanho de Deus – mesmo porque, por outro lado, têm surgido pretensos pastores que mais se aproveitam do poder e do dinheiro das pessoas do que, de fato, exercem o pastorado com integridade. E, neste ponto, temos observado diversos caminhos perigosos. Em primeiro lugar, o que vemos é o Cristianismo sendo reduzido a atividades, programas e eventos eclesiásticos e pregação. O domingo acaba se tornando um transe de fim de semana, onde a celebração dá lugar à agitação. O domingo – dia de descanso e reflexão – acaba se tornando em dia de cansaço.

É claro que o pastoreio não é uma atividade simples. Pastores são chamados a dar conta de tantas atividades e responsabilidades que acabam não tendo tempo de pastorear, cuidar do rebanho, visitar um membro da igreja que foi hospitalizado ou mesmo telefonar parabenizando uma ovelha no dia de seu aniversário. A diretoria da igreja ou da denominação cobra produtividade; reuniões sem fim são realizadas; novos projetos são apresentados a cada instante, muitos dos quais envolvendo atividades bem diversas do verdadeiro pastoreio.

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E o ministro do Evangelho, de quem se cobra sempre uma palavra inspirada e uma conduta acima de qualquer crítica, acaba não tendo tempo para orar, ler a Bíblia, fazer seu devocional ou cuidar adequadamente da família. Filhos e cônjuges precisam ser pastoreados, e o pastor acaba não dando tempo para isso – e a família acaba se frustrando com seu pastor. Paradoxalmente, há um pastor dentro de casa, mas sua própria família é órfã de pastoreio.

Para ganhar o coração e a credibilidade de uma ovelha, leva-se muito tempo. Porém, para perder a confiança e criar frustração e desapontamento, basta um segundo – seja a falta de uma visita no momento mais difícil ou a ausência de uma palavra de decisão em um momento de conflito.

Durante mais de dez anos, fiz um levantamento de dados entre colegas de púlpito de uma grande denominação em nível nacional. Os resultados, em alguns itens, chegam a ser assustadores. Treze por cento dos pastores, por exemplo, dizem que as atividades eclesiásticas empobreceram sua vida familiar; 65% admitem-se incapazes para o exercício do ministério; e 30 por cento dos pastores que ouvi dizem que, se pudessem voltar atrás, mudariam muita coisa em sua vida e ministério.

Há mais. Cerca de 30% dos pastores não têm desenvolvido uma perspectiva de vida para daqui a cinco anos; e 75% dizem que não têm disciplina no uso do tempo. Sete em cada dez deles não estão contentes com o tempo que investem na vida devocional e 75% não têm culto doméstico regularmente em seu lar (dez anos antes, o índice era 64%). Não é difícil concluir que algo vai mal. Um retrato com este cenário nos oferece algumas indicações. Em primeiro lugar, o senso de empobrecimento numa atividade de trabalho pode indicar a perda de sentido em objetivos da vida, de modo que o empenho e criatividade fiquem prejudicados. Isso cria um círculo vicioso com graves consequências futuras.

Por outro lado, o investimento na vida devocional e a autodisciplina na natureza de trabalho pastoral são fundamentais. Para falar de Deus, é necessário falar com Deus em primeiro lugar. Então, como desenvolver o ministério da pregação, do ensino, do aconselhamento – naturais na atividade pastoral – sem, contudo ter dedicada vida devocional? A indicação de 70% neste item é preocupante, pois reflete diretamente nas atividades nobres do pastoreio.

Sem púlpito, atuação no aconselhamento e ensino enriquecidos, como alimentar o povo? O que estariam fazendo estes colegas no ministério, se não dedicam tempo para falar com Deus? Estariam tão ocupados com os afazeres pragmáticos da igreja? Isso, sem falar na autodisciplina que indica carência na gestão do tempo. Tudo isso junto acarreta muita frustração e tédio. Ao fim de cada dia, o indivíduo se sente frustrado e inútil, com elevado senso de culpa.

Desajustes

Paulo, em suas epístolas, adverte a Tito e Timóteo de que quem não cuida de sua casa, não deve cuidar do rebanho de Deus. Ora, se a maioria dos pastores pesquisados parece desajustada em sua vida familiar, o que se pode esperar deles? A tristeza na vida de filhos e esposas de pastores já tem sido notada por diversos líderes mais experientes. Minha mulher, que é psicóloga, tem trabalhado com esposas de pastores e notado a decepção que muitas delas nutrem em relação ao ministério, à igreja e até com o próprio marido pastor. Isso, ainda sem contar com os desastres emocionais que a cada dia aumentam na vida de muitos pastores, com envolvimentos fora do casamento ou, simplesmente, matrimônios frustrados.

O problema é que, ao longo do tempo, foi se formando a imagem de que o “homem de Deus” é alguém sobrenatural, com capacitação gigantesca, portador de dons e talentos espetaculares, inquestionável autoridade e elevado nível de resistência às pressões, asperezas, obstáculos e intempéries da vida e ministério. Contudo, o tempo também foi provando que este imaginário não era compatível com a natureza de qualquer ser humano – afinal, pastor não é como Jesus, que tinha a natureza humana e divina. Somos, os pastores, como qualquer ser humano na face da terra: imperfeitos, limitados, pecadores.

Gente, simplesmente, e não máquina. Aliás, até as máquinas falham e necessitam de ajustes. É claro que um líder religioso não pode tratar com autoritarismo, indelicadeza, omissão ou irresponsabilidade o seu rebanho. Mas, também, a igreja não pode tratar o pastor como se fosse alguém sem sentimentos, sem família, que não tivesse dor e fosse impermeável ao sofrimento. Afinal, pastor também é gente.

Pastores necessitam ser pastoreados. As igrejas, denominações e associações ou ordens de pastores necessitam rever suas prioridades e agendas de estudos e atendimento, considerando os atuais cenários, para ajudar os pastores a enfrentar os sofrimentos e os desastres ministeriais.

Os seminários e faculdades teológicas necessitam criar oportunidades de capacitação, atualização e recapacitação continuada para pastores em temas não apenas teológicos e bíblicos, mas, também no trato dos dilemas pastorais, pessoais, matrimoniais e familiares. Tenho trabalhado em educação teológica e ministerial há quase 40 anos porque acredito que é possível sempre formar novas gerações com novas esperanças. Quase que semanalmente, digo aos meus alunos que tenho esperança neles e que poderão investir no ministério, acreditar no pastoreio de vidas e valorizar isso.

Vemos, assim, que o modelo de ministério pastoral que temos adotado por décadas demonstra estar perdendo o fôlego. É notória a presença cada vez maior, em nossas igrejas, de alunos universitários, profissionais liberais, executivos, empresários e funcionários públicos capacitados, que colocam em desafio o modelo que, tradicionalmente, tem sido construído, inclusive, nos bancos dos seminários. Tais espaços, antes chamados escolas de profetas, necessitam preparar não mais obreiros, repetidores de práticas ministeriais que bem cabiam para o passado recente, mas que hoje já não conseguem dar conta do recado.

“Época da performance”

Vivemos na época da performance, da busca por soluções para os dilemas germinados pela cultura pós-moderna, que coloca o indivíduo e a sua subjetividade como ponto de partida e legitimação da verdade e da razão da vida. As pessoas já não estão mais interessadas na eternidade, nas ruas de ouro da Nova Jerusalém. Vivemos num mundo em que tudo parece valorizar a diversidade e a busca pelas fronteiras da prática moral e ética, onde tudo é válido, desde que traga a felicidade.

Então, vivemos numa cultura do supérfluo e do vale tudo – e será que nossos púlpitos têm conseguido trazer respostas seguras e bíblicas para este turbilhão de contestações? Será que o clássico plano da salvação, fortemente calcado no Evangelho escatológico, que valoriza a morte e a busca pelo além, estaria conseguindo demonstrar a profundidade da mensagem bíblica, apontando para uma significativa razão de viver?

Tudo isso sinaliza a urgente transformação do modelo de formação teológica e ministerial, que precisa mudar de foco – da formação de obreiros para a formação de líderes. Obreiros são copiadores; são operadores práticos de um sistema; são ensinados a cumprir o verbo “fazer” no ministério. Obreiros são treinados para administrar e priorizar o dia-a-dia das atividades da igreja, e não necessariamente para ter uma visão de futuro e interpretar este mundo levando em conta tanto o ensino bíblico-teológico como primeiro ponto de partida, mas, também, considerando análises do ambientes culturais e ideológicos em que vivemos.

Urge ao ministro do Evangelho conhecer as tendências que estão cimentando o chão para novos cenários, mobilizando sua visão para a busca de caminhos seguros para que o povo de Deus possa não apenas sobreviver como participar, construtiva e criativamente, da realidade histórica em que vive.

Necessitamos não apenas de escolas de profetas, mas também de escolas de líderes, de mestres, de conselheiros e conselheiras, de gente que pastoreie o povo de Deus com sabedoria, criatividade, integridade e atualidade. Homens e mulheres de Deus que saibam se valer de uma apologética dialogal, pois a lógica do confronto já não conquista ninguém.

Nossos púlpitos necessitam, com urgência, atenuar a ênfase cartesiana e racional das mensagens e tratar o povo de Deus como gente de carne e osso, e não como anjos ou seres que estão apenas esperando a morte chegar. Os pastores precisam entender que as ovelhas que o assistem pregar todo domingo são seres vivos e reais, que vivem uma realidade concreta, que necessitam de respostas vivas e concretas para os seus dilemas quotidianos. Precisamos voltar a falar ao coração das pessoas – e não apenas falar ao seu cérebro.

É preocupante quando ouvimos pastores, inclusive que comandam grandes igrejas, falando com orgulho contra a reflexão, contra a busca de conhecimento. Eles querem que tudo se reduza ao viés prático, utilitário, da fé e da mensagem de Cristo. Ao invés de priorizar a salvação das almas e a transformação das vidas, parecem mais interessados em fidelizar clientes de bens simbólicos da religião. Curiosamente, até no meio empresarial se buscam modelos mais eficazes de liderança.

O vice-presidente da megacorporação Google, Laszlo Bock, menciona cinco critérios para o ingresso na carreira da empresa: curiosidade, capacidade de aprender, humildade, motivação e liderança. Como seria bom se nossos pastores buscassem tais elementos para seus ministérios e vida pessoal… São critérios bem compatíveis com a visão bíblica de líderes que possam levar o povo de Deus com segurança neste mundo cada vez mais afastado do divino.

Os pastores contemporâneos precisam rever conceitos, prioridades e ocupações. Metas e alvos são bons de se perseguir, mas só – e somente só – se nos conduzirem a um novo planejamento de vida e ministério que leve em conta a singeleza do Evangelho, o valor do outro e, sobretudo, a relação com Deus. Somente assim os ministros não serão apenas pregadores, mas pastores na acepção plena do termo, que conduzem os outros e a si mesmos aos pastos verdejantes do Senhor, onde há paz e plenitude. O diálogo, a oração e a dependência irrestrita de Deus são o caminho ideal para a manutenção saudável da vida na igreja.

Lourenço Stelio Rega, teólogo e pastor batista, é doutor em Ciências da Religião, especialista em ética cristã e diretor da Faculdade Teológica Batista de São Paulo

Artigo publicado originalmente no site Cristianismo Hoje em dezembro/15. Os conteúdos da Cristianismo Hoje, a partir de maio/17, estão incorporados, com autorização, à plataforma da Revista Comunhão (Next Editorial)

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