Há o desabafo de alguém com ódio, mas não há nenhuma ordenança de Deus para seu povo odiar – nem mesmo inimigos
Por Davi Lago
No tempo de Jesus, os fariseus dividiam o mundo entre quem eles amavam e quem eles odiavam. Desse modo, o núcleo doutrinário farisaico distorcia o ensinamento das Escrituras. Jesus veio reafirmar o amor como a ordenança central de Deus para seu povo. Os discípulos de Jesus deveriam ser conhecidos pelo amor, não pelo ódio.
Não é difícil entender: simplesmente não existe em nenhum lugar do Antigo Testamento uma ordenança divina de odiar inimigos. O máximo que ocorre é o salmista declarar que odeia aqueles que odeiam a Deus: “acaso não odeio os que te odeiam, SENHOR? E não detesto os que se revoltam contra ti? Tenho por eles ódio implacável!“, mas o próprio salmista diz na sequência: “Sonda-me, ó Deus, e conhece o meu coração; prova-me, e conhece as minhas inquietações. Vê se em minha conduta algo te ofende, e dirige-me pelo caminho eterno” (Salmo 139.21-24). Há o desabafo de alguém com ódio, mas não há nenhuma ordenança de Deus para seu povo odiar – nem mesmo inimigos. Podemos citar quatro exemplos simples e diretos:
O primeiro está nas ordenanças de Deus ao povo de Israel, logo após a entrega dos DEZ MANDAMENTOS, em Êxodo 23.4,5: “Se você encontrar perdido o boi ou o jumento que pertence ao seu inimigo, leve-o de volta a ele. Se você vir o jumento de alguém que o odeia caído sob o peso de sua carga, não o abandone, procure ajudá-lo“. Ou seja, Deus proibiu seu povo de fazer vistas grossas caso encontrasse a propriedade de algum inimigo perdida. Era dever do povo de Deus devolver aquele bem ao seu dono, ainda que este fosse alguém que o odiasse.
O segundo exemplo está no livro de Jó – provavelmente o mais antigo dos textos bíblicos. Há um consenso entre muitos biblistas contemporâneos de que o livro de Jó é antiquíssimo, talvez anterior à própria redação da lei mosaica. E é interessante encontrar neste livro, na oração de Jó, a consciência de que Deus não se agrada de alguém que celebra a desgraça na vida do outro, ainda que seja seu inimigo. O próprio Jó, ao apresentar sua causa diante de Deus, fez a seguinte oração: “Se a desgraça do meu inimigo me alegrou, ou se os problemas que teve me deram prazer; eu, que nunca deixei minha boca pecar, lançando maldição sobre ele […] que me venham espinhos em lugar de trigo e ervas daninhas em lugar de cevada” (Jó 31.29,30,40). Ou seja, Jó tinha a noção de que era merecedor de castigo caso tivesse celebrado a desgraça na vida de um inimigo. Ele tinha a percepção de que Deus não se apraz deste tipo de comportamento.
O terceiro exemplo deixa isto ainda mais claro. Em Provérbios está escrito de modo explícito: “Não se alegre quando o seu inimigo cair, nem exulte o seu coração quando ele tropeçar, para que o SENHOR não veja isso, e se desagrade, e desvie dele a sua ira” (Provérbios 24.17-18).
O quarto exemplo, ainda no livro de Provérbios, é cabal: “Se o seu inimigo tiver fome, dê-lhe de comer; se tiver sede, dê-lhe de beber. Fazendo isso, você amontoará brasas vivas sobre a cabeça dele, e o Senhor recompensará você” (Provérbios 25.21-22). O apóstolo Paulo cita este texto em Romanos 12.20 e afirma: “Não se deixem vencer pelo mal, mas vençam o mal com o bem” (Romanos 12.21).
No Sermão do Monte Jesus passou uma navalha no ensino mentiroso e parasitário dos fariseus: “Eu, porém, vos digo“. Jesus contradisse abertamente o que os fariseus ensinavam: “Amem os seus inimigos e orem por aqueles que os perseguem“. Não há espaço para o ódio na vida cristã: os seguidores de Jesus são desafiados a amarem radicalmente. O ódio é caracterizado na tradição cristã como uma das “obras da carne”, ou seja, uma das evidências de que alguém não vive pelo Espírito de Deus (Gálatas 5.19-21). Em outra direção, o fruto do Espírito é “amor, alegria, paz, paciência, amabilidade, bondade, fidelidade, mansidão e domínio próprio” (Gálatas 5.22-23).
Davi Lago ,Capelão da Primeira Igreja Batista de São Paulo