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domingo, 16 DE fevereiro DE 2025

Moradores de rua: eles têm fome, frio e pressa

Pessoas em situação de rua sofrem com as mudanças climáticas, principalmente em dias frios. Foto: Reprodução/Senado Federal
Pessoas em situação de rua sofrem com as mudanças climáticas, principalmente em dias frios. Foto: Reprodução/Senado

Relatos de moradores de ruas ou de quem vai até eles consolidam a prática da maior lição de Cristo: o amor ao próximo

Quando a previsão do tempo na TV informa que o inverno será de ondas de frio fortes e de grande extensão, ocorre uma cisão invisível na sociedade: de um lado, os que logo pensam em aproveitar a beleza da estação para curtir um friozinho nas montanhas, com comidas quentes e roupas elegantes; de outro, um tipo diferente de Brasil, privado do mínimo para sobreviver com dignidade, perambulando pelas ruas e enfrentando o rigor do vento que sopra em seus corpos fracos, famintos, solitários e desabrigados. Quem se importará com aqueles que integram essa camada socialmente açoitada pelas penúrias da madrugada? Eles têm frio e fome. Eles têm pressa!

Diante desse drama, resta agora torcer para que, sempre que os raios de sol cederem lugar ao céu escuro e úmido, homens, mulheres, crianças e idosos sejam encontrados por quem abrigou, saciou e acolheu Jesus. De que forma? Vestindo e aquecendo os que Ele mesmo chama de “meus pequeninos”: “Porque tive fome, e destes-me de comer; tive sede, e destes-me de beber; estava nu, e vestistes-me. Em verdade vos digo que quando o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes” (Mt 25:34-40).

Afinal, pior do que ser maltratado por condições climáticas rigorosas é nunca experimentar o calor humano dissipando, de mansinho, a brisa fria do abandono e da indiferença. No que depender da missionária do Radical Brasil, em Vitória (ES), Elayne Siqueira; da enfermeira aposentada Denise Rangel, de Mesquita (RJ); da moradora de um dos barracos na ocupação em Nova Palestina (SP), Maria Ramos; e de Cleimar Bertazo de Oliveira, da Igreja Batista, em Vila Velha (ES), isso não vai acontecer. Elas se importam com a população de rua e conhecem bem o significado das palavras compaixão e solidariedade.

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Não só isso. Agem para provar que a máxima do “cada um no seu quadrado” não faz parte dos ensinamentos de Jesus. Vivem na pele o que ensinam no discurso. Deixam o conforto de suas casas, muitas vezes à noite, e saem em busca de quem é castigado pelo gelado inverno na madrugada. Levam a tocha simbólica de um fogo que arde em seus corações, fazendo com que não consigam ficar paradas debaixo de seus edredons. Propagam as chamas do amor de Cristo nos lugares menos confortáveis possíveis, cumprindo o que está em Lucas 14:2: “Então o dono da casa ordenou ao seu servo: ‘Vá rapidamente para as ruas e os becos da cidade e traga os pobres, os aleijados, os cegos e os mancos’”.

Em obediência a essa ordem, Elayne juntou-se à equipe Cristolândia, levando alimento, café, água, agasalho e lençóis para amenizar o sofrimento dos que vivem na rua. “O frio já está castigando. Um dos homens que estavam sendo atendidos comentou que um dos colegas havia falecido à noite por causa do frio”, relata a missionária.

Já Denise Rangel encontrou uma forma de praticar a compaixão com crianças que residem em comunidades carentes. “Minha netinha Ana Clara tem de tudo. Não posso olhar para ela sem me lembrar de outras crianças. Ajudo com alimentos, leite em pó e brinquedos. O sorriso e o abraço delas são minha recompensa”, conta.

Historicamente, Mateus 25 trata de um julgamento às nações que apoiaram e acolheram Israel. Desde suas peregrinações pelo mundo, como forasteiros, foram muitas fugas de um povo que precisou de abrigo, suprimentos e acolhimento.

Quando a chuva passar…

“Levanta-te, querida minha, formosa minha. Porque eis que passou o inverno, cessou a chuva; aparecem as flores na terra, chegou o tempo de cantarem as aves. A figueira começou a dar seus figos, e as vides em flor exalam o teu aroma. Pomba minha que andas pelas fendas dos penhascos, no esconderijo das rochas escarpadas, mostra-me o rosto.”

O pano de fundo desse poema de Salomão é o inverno em Israel, um período de intensas chuvas e muito frio. O sábio rei anuncia nesse trecho o fim dessa fase de agruras, pois os tempos difíceis terminam em algum momento. Numa alegoria com a estação gelada e sombria que paralisa e castiga, há pessoas que se encontram em pé fisicamente, mas deitadas em seu viver, sem perspectivas de algo novo. Em meio a essa apatia, pode-se ouvir a doce e divina voz: “Levanta-te, meu amor. Atenta para a nova estação que está à tua frente. O frio se foi”.

Na vida de muitos, o inverno não representa apenas frio e chuva, mas também lágrimas, espera, prostração, impotência e dias sombrios, como aqueles em que a chuva grossa cai e ficamos parados debaixo de qualquer lugar, sem abraço e atenção. É nesse triste cenário que Deus age usando Salomão como um lampejo de luz e calor surgido na fria escuridão: “Você não percebe que o inverno já passou anunciando uma nova estação? O tempo de lamento já é passado e agora é tempo de cantar? Deixa-me colocar um cântico novo em sua boca”.

“– Andressa, querida, do que você precisa?
– De um biscoito.
– Mas você deve ter um sonho…
– Sair dessa vida.”

Esse chamamento está correlacionado à experiência de Elayne, que viu de perto o sol brilhar na vida de quem só conhecia dias apáticos.  “Minha história começa com o exemplo dos meus pais, que sempre amaram demais o próximo. Certa vez eles acolheram um moço em situação de rua, colocaram dentro de nossa casa e cuidaram dele. Esse homem se converteu a Cristo, formou família, teve filhos, foi reinserido na sociedade. Propus em meu coração doar um dia da semana como voluntária e ao meditar em 1 Pedro 4:10 fui direcionada para a Cristolândia, que tem como foco atender pessoas em situação de rua.”

Os pais de Elayne ensinaram-na a buscar os que andam pelas fendas dos penhascos, no esconderijo das rochas para fugir do frio, da fome e do risco de morte, mencionados por Salomão. “Durante o treinamento, entramos em comunidades fortemente armadas no Rio de Janeiro. E não tem explicação humana para isso, porque egoísmo é a nossa tendência, mas o amor de Deus nos move”, conclui.

Não se trata de romantismo, mas da manifestação de um puro e genuíno amor, que de tão grande é impossível de ser mensurado, pois refere-se ao ágape de Deus, citado na série “As Formas de Amar”, publicada em Comunhão. Era a chegada da primavera para aquele rapaz. Um tempo de esterilidade, de sono, de espera, de desconforto, de noites mais longas que dias dariam lugar a um novo tempo para aquele que foi acolhido pelos pais de Elayne. Se não o tivessem amparado, será que ele teria se convertido?

“Deparei-me com uma senhora deficiente física, em cima de uma cama encharcada; a lona que era seu teto estava furada e na noite anterior havia chovido bastante. Os voluntários mobilizaram-se limpando o local infestado por baratas, uma condição subumana. Esse processo não foi fácil, porque eles receiam deixar tudo que possuem na rua. Mas dona Maria durante o banho relatou: ‘Como é bom tomar banho! Faz 15 dias que não lavo minha cabeça’”.

Assim como a Palavra de Deus afirma que há tempo de chorar e tempo de rir; de abraçar e de afastar-se (Ec 3:2-5), na nossa vida o inverno existe para mostrar que há um propósito para todas as coisas, inclusive para os que nunca souberam o que é frio e fome. Há tempos em que necessitamos do recolhimento. Parece que a vida fica sem graça, o céu permanece mais tempo cinza, as circunstâncias do ambiente noticiam a instabilidade financeira ou emocional, seja a saudade, seja alguma dor física trazendo inverno para a saúde do corpo, ou ainda a crise existencial, as perdas, traições.

São muitas as adversidades que sobrevêm a todos e que sinalizam que é o tempo de parar, refletir e esperar passar o “frio”. Em Israel, durante três meses chove o suficiente para que ao longo do ano inteiro haja vida e não falte água. O inverno pode ser uma estação pedagógica.

Dai-lhes vós de comer

Quando os discípulos questionaram Jesus sobre como alimentar a multidão que O seguia e teve fome (Lc 9:13), ouviram: “Dai-lhes vós mesmos de comer”. O Messias não mandou que procurassem as autoridades, a municipalidade ou o governo.

Quantas pessoas morrem de frio debaixo de marquises, nos períodos mais frios do ano? E quantos sentem sede no imenso calor do verão do Nordeste, onde a seca predomina quase em todas as estações do ano? É preciso se compadecer do pobre, dos idosos, das viúvas, dos mendigos. E muitos são largados pelas suas famílias em manicômios, orfanatos ou asilos. “Aquele que se compadece do pobre empresta ao Senhor, que lhe retribuirá o seu benefício” (Pv 19:17).

Moradora de um dos barracos na ocupação em Nova Palestina (São Paulo), Maria Ramos tomou para si a responsabilidade de ajudar.  “São muitas pessoas carentes sem ter o que comer. Temos muitos desempregados e, às vezes, não sabemos nem como ajudá-los”, lamenta.

Regiane da Silva é mãe de Pablo, 16 anos, Emily, 12, Mirela, 3, e Lohany, dois meses. “É muito difícil ser mãe e não ter o que oferecer aos filhos. Maria sempre me ajuda com medicamentos, leite, fraldas. Preciso de ajuda para a educação deles; meu maior medo é perdê-los para o mundo”, desabafa.

O teólogo belga José Comblin descreve a dificuldade de muitos em enxergar os excluídos: “O pobre sempre foi o outro. Hoje parece que é ainda mais ‘outro’, mais alheio do que nos séculos anteriores. Ele fica excluído também geograficamente: para comprovar sua rejeição, basta ver o lugar onde mora”.

Comblin destaca que, para a conversão do pobre acontecer, é necessário dar o primeiro passo em direção a ele. “Não se articula a libertação num escritório, diante de um computador. Para iniciar esse processo, há necessidade de contato pessoal”, afirma ele em “O Olhar”, no seu livro “O Caminho – Ensaio sobre o seguimento de Jesus”.

A matéria acima é uma republicação de edições anteriores de Comunhão. Fatos, comentários e opiniões contidos no texto se referem à época em que a matéria foi escrita.

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