Pastores desmistificam à luz da Bíblia a prática como forma de reforçar a intimidade com Deus
Por Rafael Ramos
Hábito cultivado por cristãos e seguidores de outras religiões, o jejum se caracteriza pela abstenção dos prazeres e necessidades da carne para elevar o espírito a Deus. Mas qual a verdadeira função dessa prática? Qualquer pessoa pode adotá-la? Quais os benefícios que ela pode trazer à alma e também à saúde?
Apesar de ser um dos meios para se estabelecer uma maior conexão com o Pai, o jejum já era comum nas culturas pagãs da antiga Mesopotâmia, tido como forma de proteção contra desgraças e espíritos maus ou para se alcançar sucesso e fertilidade.
Algo assim é descrito em I Samuel 31:13 – “E tomaram os seus ossos, e os sepultaram debaixo de um arvoredo, em Jabes, e jejuaram sete dias”. Nesse texto, Israel lamenta a morte de seu rei Saul, que se matou após árdua peleja cujo resultado fala da derrota do exército hebreu contra os filisteus.
O pastor Yuri Rangel, da Igreja Palavra Viva de Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro, levanta duas questões acerca do tema. Ele cita que, segundo a Bíblia, a história mostra que certos jejuns não representam necessariamente um modo divinamente estabelecido de reagir às circunstâncias da vida, como apresentado no trecho acima.
Outro ponto que vale a observação é que judeus e cristãos gentios tratam a prática sob perspectivas diferentes. “Era muito usual no Antigo Testamento, por exemplo, as pessoas jejuarem em ritos de purificação (Lv 16:29-31) e arrependimento (I Sm 7:6; Jn 3:7-10).
Já os cristãos, que têm a certeza do perdão e restauração mediante o sangue de Jesus (I Jo 1:7 – 2:2), aderiam a tal abstinência para obter sábias diretrizes para a missão da Igreja (At 13:2,3 – 14:23)”, resume.
O ato muitas vezes é associado a momentos de privação voluntária de alimentos, como fizeram Moisés no monte Sinai (Êx 34:28) e Cristo no deserto onde passou 40 dias e 40 noites sem comer, como visto em Mateus 4:1-2.
Além deles, podemos elencar Ester e os judeus, antes de a rainha interceder por seu povo (Et 4:16); Paulo após o encontro com Jesus na estrada para Damasco (At 9:9); e o profeta Elias a caminho do monte Horebe (I Rs 19:8).
O próprio verbo grego “nēsteúō” (νηστεύω), traduzido por “jejuar” ao longo do Novo Testamento, enfatiza essa ideia, pois é composto da partícula “nē” (“νη” = “não”) e do termo “esthíō” (“ἐσθίω” = “comer”, “devorar”), significando, portanto, “não comer”, explica o pastor. “Todavia, outra expressão bíblica, usada no Antigo Testamento, parece indicar um envolvimento ainda mais intenso do fiel durante esses momentos. Trata-se de ‘afligir a alma’ (cf. Lv 16:29,31; Sm 35:13), uma figura de linguagem que retrata a entrega emocional durante o período, numa busca intensa por meio de orações e confissões”, ressalta.
O “afligir a alma” aponta uma entrega emocional que deve ocorrer durante o processo. Esse esforço só cumprirá seu propósito se, na maior parte do tempo, o fiel estiver ocupado com atividades espirituais, como: oração, leitura da Bíblia, meditação, adoração, etc. “Ocupar-se com um lazer qualquer não se constitui exatamente uma quebra do jejum, mas pode destoar do seu propósito, caso o crente veja nisso uma forma de fugir das disciplinas que realmente o edificarão.
Quem jejua deve organizar seu tempo, dedicando a maior parte para atividades espirituais e avaliando quais outras atividades naturais são realmente necessárias naquele momento, evitando aquelas que o distraem do propósito de seu jejum.”
OS BENEFÍCIOS DO JEJUM
Dentre os maiores benefícios dessa consagração está uma maior sensibilidade de nosso espírito em relação a Deus. Assim como o primeiro pecado tomou forma no ato de comer, aquele que se abstém de refeições no jejum se propõe a ser guiado por Deus, contrariando as vontades de seu coração.
“É uma ótima ferramenta para o cristão se tornar mais sensível à voz divina e obter sábia direção na tomada de decisões, resolução de problemas e definição de projetos”, resume Yuri.
Pastor da Assembleia de Deus Bereana em Vila Mariana (SP) e doutor em História Social, Magno Paganelli defende que a principal ideia é sensibilizar-se diante do Senhor e se tornar aberto à presença do Espírito Santo.
O jejum, acrescenta, reforça a oração, e vice-versa. “O salmista disse que humilhava a alma com o jejum (Sl 35:13). Ele nos leva a um maior nível de consagração, é um exercício espiritual o qual, por meio da força do meu espírito, subjugo minha carne, como fizeram Jesus, Moisés e Elias.
A prática vai pressupor um poder do espírito sobre a carne e ajudar a ter domínio próprio sobre todas as coisas, inclusive sobre o pecado. Visa ao fortalecimento espiritual. Então, quando se fala que uma casta só sai com jejum e oração (Mt 17:21), entendo que essa pessoa terá maior autoridade sobre os demônios”, disserta.
Além de tornar o indivíduo mais sensível ao que diz o Soberano, a entrega traz benefícios à saúde física. A nutricionista Lidiane Santana destaca a longevidade – aumento da expectativa de vida – e a renovação celular como exemplos.
As vantagens passam, ainda, por melhor qualidade de vida, por causa do aumento da produção do hormônio do crescimento, que ajuda na queima de gordura, além de contribuir para a diminuição nos níveis de insulina no sangue.
Ótima opção para a perda de peso e de gordura visceral, a prática do jejum também reduz episódios de compulsão alimentar. “Para essa privação, é preciso estar preparado física e psicologicamente. Primeiro, você deve ter uma alimentação balanceada, nutricionalmente completa.
Dessa forma será mais fácil a implementação do jejum em sua rotina. Quem faz uso de remédios controlados tem de ajustar a estratégia com o profissional que o acompanha”, orienta.
DESMISTIFICANDO O JEJUM
Como muitos temas que envolvem a vida espiritual do cristão, o jejum também cria dúvidas e diferentes interpretações. Um desses questionamentos refere-se ao consumo zero de alimentos sólidos e água – o jejum absoluto. Por outro lado, a Bíblia também mostra o jejum parcial, como descrito em Daniel 10:3 – “Alimento desejável não comi, nem carne nem vinho entraram na minha boca, nem me ungi com unguento, até que se cumpriram as três semanas”.
Yuri Rangel detalha que o jejuar não é uma ordenança da Bíblia e que a maioria dos casos descritos ao longo da narrativa do Livro Sagrado são expressões voluntárias, culturais ou, quando muito, orientadas por um líder civil ou religioso (II Cr 20:3; Es 8:21-23).
“O Novo Testamento, sobretudo, não regulamenta o jejum nas igrejas, apenas alerta contra a hipocrisia (Mt 6:16-18) e acerca da necessidade do jejum a partir dos dias em que o ‘esposo nos seria tirado’ (Lc 5:33-35). Com isso, muitos evangélicos têm se disposto a diferentes formas de jejuar, como abstinência de rede social, de conversas, de certos alimentos.
Tais modalidades não são sugeridas diretamente pelas Escrituras, mas são válidas quando executadas de maneira voluntária, respeitando os devidos cuidados médicos e, sobretudo, não esperando que através delas se obtenha mais santidade aos olhos de Deus.”
Ainda falando sobre os demais tipos, como a autoprivação de acesso a redes sociais, o pastor Magno Paganelli reforça que esses hábitos têm mais a ver com o autodomínio do que com o jejum propriamente dito. “As pessoas esticaram uma prática para poder alcançar seus objetivos, mas historicamente não faz sentido.
É um esforço que não encontra um apoio bíblico. O jejum nos leva a um maior nível de consagração, e a prática vai pressupor um comando do espírito sobre a carne e ajudar a exercer seu domínio próprio sobre todas as coisas, inclusive sobre o pecado.
E o ideal é que o fiel mantenha os cuidados com a saúde e faça isso consciente de que é um ato de adoração e consagração a Deus.”
UM ATO PARTICULAR E “NO SECRETO”
Em Mateus 6:16-18, Cristo traz o seguinte alerta: “E, quando jejuardes, não vos mostreis contristados como os hipócritas; porque desfiguram os seus rostos, para que aos homens pareça que jejuam.
Em verdade vos digo que já receberam o seu galardão. Tu, porém, quando jejuares, unge a tua cabeça, e lava o teu rosto, para não pareceres aos homens que jejuas, mas a teu Pai, que está em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará publicamente”.
As Sagradas Escrituras são categóricas ao afirmar que se trata de uma realização espiritual de cunho pessoal, como aponta o pastor Janderson Moura, da Igreja Batista da Lagoinha em Niterói (RJ). “O papel do jejum, à luz da Bíblia, é claramente proporcionar um ambiente no qual você estabelece um padrão de alimento espiritual e controle sobre a carne.
Não está ligado apenas a deixar ou abster-se de algo. O jejum é um ambiente de constante busca e momentos de intimidade com Deus em secreto.”
Tomando como base o texto de Mateus 6, o Pr. Paganelli salienta que aquele que jejua não deve visar a um prêmio, mas ter como alvo a manifestação da sua fé ao Pai. “Orar em secreto vale para o jejum também. Importante que não seja alardeado, pois a pessoa estará exibindo uma falsa piedade que não se justifica.”
Semelhantemente, o Pr. Yuri diz que “o ideal é jejuar de maneira discreta e só contar para alguém se realmente houver necessidade”. Nesse caso, levante-se outra questão que envolve os casados.
Em I Coríntios 5.7, Paulo escreve à igreja da época: “Não vos priveis um ao outro, senão por consentimento mútuo por algum tempo, para vos aplicardes ao jejum e à oração; e depois ajuntai-vos outra vez, para que Satanás não vos tente pela vossa incontinência”. Em relação ao texto, os pastores consultados por Comunhão concordam que, ao abandonar o sexo por um determinado período, a pessoa está se consagrando a Deus, mas tal decisão deve ser combinada, feita por consentimento mútuo.
Em suma, os cônjuges devem concordar com essa abstinência feita por tempo limitado.
Um outro ponto muito comentado é a “quebra do jejum”, que, na avaliação do Pr. Yuri, ocorre quando fugimos do propósito com o qual nos dispusemos a fazê-lo.
“Quem se propõe a se abster de alimentos, para dedicar um período de consagração pessoal, deve manter-se concentrado nesse desafio. Quem se descuida disso e ingere alimentos ou se distrai com atividades pecaminosas está quebrando seu período de consagração pessoal.
Isso não significa que o crente deva se deixar dominar pelo sentimento de culpa ou incapacidade. Se quebrou o jejum, recomece, reserve outro período mais curto e volte a buscar a Deus.”
Para o pastor Paganelli, essa quebra também pode ocorrer quando se fala alguma besteira ou se toma alguma atitude que vá contra o espírito de consagração do jejum. “Isso vai do modo como a pessoa vê Deus. Mas será que Deus é tão rigoroso a ponto de jogar isso fora? Deus perdoa, mas vai da relação de cada um com o Pai”, encerra.
Esta matéria foi publicada originalmente em 2019, no portal da Revista Comunhão. As pessoas ouvidas e/ou citadas podem não estar mais nas situações, cargos e instituições que ocupavam na época, assim como suas opiniões e os fatos narrados referem-se às circunstâncias e ao contexto de então.
Dicas de leitura
O Jejum de Jesus
Lou Engle e Dean Briggs – Editora Vida
Jejum de Daniel: Distante do Mundo, Perto de Deus
Edir Macedo – Editora Unipro
O Poder Secreto da Oração e do Jejum
Mahesh Chavda – Editora Vida