Para a pesquisadora Magali Cunha, esta ideia é um equívoco, uma vez que a identidade do eleitor não é determinada pela sua religião
Por Michelli de Souza
Desde a Constituinte, quando os evangélicos começaram a crescer tanto na participação da vida pública quanto em contingente populacional, vem sendo defendida a ideia acerca da existência de um voto evangélico. Nesse contexto, a corrida eleitoral não considera o fato de que este segmento, além de ser plural, não tem a sua identidade moldada apenas pela religião. É isso que afirma a jornalista e pesquisadora Magali Cunha, especialista nas temáticas que envolvem a atuação dos evangélicos na sociedade. “A identidade religiosa vai ajudar a moldar, sim, a visão de mundo que a pessoa tem, mas ela vai decidir pelo seu voto a partir daquilo que tem a ver com a sua vida”, declarou.
Cunha é doutora em Ciências da Comunicação, pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (ISER) e editora geral do Coletivo Bereia – Informação e Checagem de Notícias (em ambientes digitais religiosos). Além de se debruçar sobre o estudo dos evangélicos na vida profissional, ela vivencia o Evangelho e integra o rol de membros da Catedral Metodista do Catete, no Rio de Janeiro. Atualmente, ela também é colaboradora do Conselho Mundial de Igrejas. Confira a entrevista completa:
Comunhão: Quem são os evangélicos, este segmento que está tão em voga nos cenários midiático, acadêmico e político?
Magali Cunha: Os evangélicos são, historicamente, um grupo estabelecido no Brasil desde o século XIX por meio de missionários dos Estados Unidos. Têm um crescimento muito grande no país, fundamentalmente por conta da chegada dos pentecostais no início do século XX, também com missionários que vêm dos Estados Unidos. Apesar de alguns terem nacionalidade sueca, das Assembleias de Deus, outros também vão chegar: Congregação Cristã do Brasil, Evangelho Quadrangular e outros grupos que vão possibilitar o crescimento por conta da opção de atuação nas periferias. Isso torna possível, então, um crescimento muito grande, especialmente com a urbanização do século XX, anos 1950.
Isso significa falar de evangélicos sempre no plural, com uma visão dessa diversidade. Os evangélicos são aqueles grupos, originalmente, da reforma protestante e do movimento pentecostal, mas eles se refazem, vindo dos Estados Unidos, chegando no Brasil, chegando na América Latina. São grupos muito diversos, mas, para o final do século XX, nós vamos ver novas igrejas, independentes dessas duas tradições e que são chamadas de neopentecostais, novos pentecostais, pelas características diferenciadas do exorcismo, da teologia da prosperidade, que vão ser assimiladas pelas outras igrejas.
Até que ponto é correto (ou incorreto) usar essa expressão: “os evangélicos” e por quê?
Falar de os evangélicos é importante, é correto, mas é preciso estabelecer sobre quais grupos se está falando, porque as origens, teologias, posturas são distintas. Então, ao se falar que “os grupos evangélicos fazem”, isso é um erro. Ninguém fala pelos evangélicos, eles não têm uma estrutura hierarquizada comum como têm os católicos. Quanto aos católicos, é possível dizer “os bispos católicos”, porque tem a CNBB, mas os evangélicos não têm essa estrutura hierarquizada centralizada. São grupos diversos, cada um com a sua forma de governo, com as suas lideranças. Então, ao se referir a evangélicos, de um modo geral, é preciso estabelecer de qual grupo se está falando, grupos de igrejas que têm uma proximidade em termos doutrinários, teológicos ou grupos por discursos, “os evangélicos da prosperidade”, “os evangélicos ecumênicos”, “os evangélicos progressistas”, “os evangélicos da teologia XYZ”.
Em qual momento da história a hipótese da existência de um voto evangélico começou a ser formulada?
A ideia de um voto evangélico começa a aparecer a partir do surgimento da bancada evangélica no Congresso Constituinte de 1986. Essas eleições de 86 são um marco, porque há, de fato, pela primeira vez, uma organização maior de grupos evangélicos participando do processo com candidaturas, sejam das igrejas, sejam individuais, identificando-se como evangélicos que defenderiam os valores religiosos na nova constituição pós-ditadura militar.
Então, a partir daí os evangélicos se tornaram um grupo a se prestar atenção, e eles ganham mais força com os governos de esquerda, os governos Lula e Dilma, porque aí eles vão ter um lugar no Executivo, para além do Legislativo. São os primeiros ministros de Estado que vão surgir, os ministros, mesmo não religiosos, vão dialogar com evangélicos. Então, essa força vai se estabelecer e essa ideia de que os políticos, em nível local, municipal, estadual e em nível nacional, precisam conversar com lideranças porque esse se torna um eleitorado.
É possível falar, então, na existência de um voto evangélico?
A ideia de que existe um voto evangélico é um equívoco. Comprovadamente em pesquisas científicas, existe o eleitorado identificado como evangélico, mas a gente tem que lembrar que evangélico é uma pessoa inteira que vive muitas perspectivas, a pessoa não é só religiosa, a pessoa é muitas coisas na vida e essas outras coisas determinam a vida dessa pessoa, que vai ter a identidade religiosa como um elemento dentro dessa teia de identidades. Essa identidade religiosa vai ajudar a moldar, sim, a sua visão de mundo, mas ela vai decidir pelo seu voto a partir daquilo que tem a ver com a sua vida, com aquilo que ela pensa que vai trazer benefícios para a sua vida, para o seu salário, para a sua casa, para os seus filhos, para a segurança que ela precisa ter, para o cuidado com a saúde. Isso tudo que vai determinar. As pessoas votam, não porque são religiosas, mas votam porque são pessoas, e a religião vai interferir ou não nessa decisão.
A ideia de voto evangélico ganhou uma nova configuração desde as eleições de 2018, quando passou a se defender a tese de que os evangélicos elegeram Bolsonaro?
A ideia do voto evangélico ganha uma nova configuração porque vai se articular em torno dessa figura (Jair Bolsonaro, apesar de ser um católico). Existe o imaginário evangélico de se ter um presidente evangélico. A partir da campanha de Bolsonaro, por ele se estabelecer com essa figura, apesar de ser uma pessoa com um discurso muito violento, muito agressivo, mas tocava em pontos sensíveis, como a questão da segurança, como uma vingança contra inimigos da fé. Isso toca no imaginário dessas pessoas e teve um efeito muito grande. O interessante é que ele não foi reeleito, então se esse voto evangélico de fato existisse, ele seria reeleito com o mesmo número de votos evangélicos que foi alto em 2018, mas foi baixo em 2022 e ele perdeu. Então, é muito interessante isso, isso confirma que as pessoas decidem por aquilo que observam.
Como você analisa o fato de os holofotes estarem voltados para a relação dos evangélicos com a política dos últimos anos?
Os holofotes estão voltados para os evangélicos na política nos últimos anos por conta desse crescimento evangélico no Brasil. Isso é de fato uma ocorrência, os católicos ainda são hegemônicos, mas deixam de ter aquela força que se tinha no passado, do Brasil como um país católico. Os evangélicos ocuparam um lugar, trazendo uma perspectiva mais plural para o cristianismo no Brasil e esse predomínio evangélico, não só na política, mas no campo da cultura, com artistas, com o mercado gospel, o mercado religioso evangélico tendo muita força. Então isso dá esse destaque, e quem não prestava atenção nisso passa a prestar, especialmente por conta da visibilidade política conquistada com o governo Bolsonaro, que colocou ministros de Estado evangélico em muito maior número do que eles existiram antes, políticas públicas voltadas para evangélicos, então isso ganhou uma relevância.
Associa-se o evangélico ao extremismo de direita. Isso reflete a realidade?
Associar os evangélicos ao extremismo de direita é um erro, isso não é correto. Existe, sim, uma parcela de evangélicos alinhados à extrema direita, e nós podemos dizer evangélicos que são alinhados politicamente à extrema direita. É uma parcela, não é maioria. A grande maioria, isso existe demonstração em pesquisas, ela é de evangélicos moderados, de centro, centro-direita. Mas nós também temos evangélicos moderados alinhados à esquerda, às pautas de esquerda, isso é histórico, como eu falei. Então não é correto dizer evangélicos de extrema direita, que ocupam a extrema direita. Existem pessoas de extrema direita que são evangélicas, então é preciso sermos corretos nessa classificação.