Enquanto a Associação Brasileira de Psiquiatria critica a simplificação do tema, especialistas associam a campanha ao aumento das taxas de suicídio
Por Patrícia Esteves
Desde 2015, a campanha Setembro Amarelo tem buscado conscientizar a população sobre a prevenção ao suicídio no Brasil. No entanto, um estudo recente trouxe à tona questionamentos sobre a eficácia da ação. Ao analisar dados do DataSUS entre 2000 e 2019, pesquisadores observaram um crescimento mais acentuado nas taxas de suicídio após o início da campanha, especialmente nos meses de setembro e outubro, sugerindo a necessidade de um debate mais profundo sobre as abordagens adotadas.
O estudo foi conduzido pelo psiquiatra Rodolfo Damiano, do Departamento e Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, em parceria com pesquisadores de outras quatro universidades brasileiras, além da faculdade sueca Karolinska Institutet, e a organização americana dedicada à saúde mental Child Mind Institute e publicado no Journal of Affective Disorders.
O estudo não estabelece uma relação causal direta entre o aumento das mortes e o Setembro Amarelo, mas levanta a hipótese de que a conscientização sem suporte adequado pode ter consequências não intencionais. “Embora não possamos atribuir causalidade, nossos resultados reforçam a necessidade de mais estudos para entender o papel das campanhas de conscientização”, afirmam os autores da pesquisa. A falta de infraestrutura no sistema de saúde mental, especialmente em países de baixa e média renda como o Brasil, é uma das principais preocupações apontadas pelos especialistas.
Apesar das críticas, a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) se posicionou firmemente em defesa da campanha. O presidente da ABP, médico psiquiatra Antônio Geraldo, PhD em sua área, destacou a complexidade do fenômeno do suicídio, afirmando que “não se pode correlacionar o suicídio com um único fator”. Geraldo argumenta que o aumento de suicídios deve ser analisado à luz de múltiplas variáveis, como o maior consumo de álcool e drogas, o impacto das redes sociais e a redução dos leitos psiquiátricos no país.
Múltiplos fatores
O mesmo ponto de vista tem o psicólogo Francisco Regio, especialista no assunto. Ele, que também é diácono no Ministério Mudança de Vida, em São José do Rio Preto/SP. argumenta que é impossível e errado tratar o tema de maneira simplória, ou como apenas um problema espiritual, sem considerar os diversos fatores envolvidos. “Pensamentos suicidas são multifatoriais e envolvem múltiplos problemas, que se acumulam ao longo da vida da pessoa até ela acreditar que o suicídio é a única maneira de eliminar a dor”, explica.
Outro ponto levantado pelos especialistas ouvidos sobre a pesquisa é o marketing raso que tem caracterizado algumas ações durante o Setembro Amarelo. A psicóloga Karen Scavacini, outra especialista no tema, critica o que ela chama de “marketing amarelo”. Para ela, ações superficiais, como distribuir fitas amarelas ou oferecer mensagens motivacionais, não alcançam quem realmente precisa de ajuda. “Dizer ‘se precisar, peça ajuda’ para alguém em sofrimento intenso pode ser inútil se essa pessoa já tentou pedir ajuda e não foi ouvida. A campanha precisa fugir dos clichês e oferecer soluções práticas”, afirma Scavacini.
Francisco também apresenta sua percepção afirmando que é necessário falar abertamente com líderes espirituais, professores e diretores de empresas, entre outros, sobre esse assunto. “Não basta apenas dizer ‘valorize a vida’ ou apontar que a pessoa tem uma família boa e uma vida boa. No momento, isso não é suficiente. Muitos fatores influenciam esses pensamentos e atitudes, e apenas demonstrar que a vida é bela não resolve”, afirma.
Só conscientizar não basta
De acordo com os especialistas, a conscientização sobre o suicídio precisa ser acompanhada de ações concretas e contínuas, que incluam a formação de profissionais de saúde, o treinamento de professores para identificar sinais de alerta e a criação de políticas públicas que realmente façam a diferença. O papel da igreja, segundo Francisco Regio, é apoiar ações e se capacitar cada vez mais.
“O suicídio não é um problema recente. Já existia desde os tempos bíblicos e precisamos dar muito mais valor a essa questão do que fazemos atualmente. Banalizar o sofrimento como ‘frescura’ ou ‘chamar atenção’ é falso. As pessoas precisam de tratamento, acolhimento e uma escuta qualificada. Infelizmente, a rede de saúde não comporta a demanda”, reforça Regio, enquanto explica que em sua igreja, por exemplo, há psiquiatras e psicólogos que frequentam, e os dirigentes não se opõem ao atendimento profissional quando existe a necessidade. “As igrejas precisam abrir espaço para discutir isso com clareza, trazendo profissionais para orientar, discutir e debater sobre o tema”, propõe.
As críticas à campanha refletem a necessidade de uma reformulação, buscando ações mais efetivas e uma expansão das iniciativas para além de um único mês – setembro. Enquanto o debate segue, uma coisa é certa: o suicídio é um fenômeno complexo, e a luta para preveni-lo exige mais do que slogans e campanhas pontuais; ela demanda um esforço contínuo e estruturado, inclusive da Igreja, para salvar vidas.
“Se buscarmos na Ciência e na Teologia, veremos que muitos líderes espirituais, tanto evangélicos quanto católicos, reconhecem que parte do problema é espiritual, mas parte é transtorno. Vivemos em uma sociedade acelerada e não conseguimos lidar com todos os nossos problemas. Por isso, é essencial que os líderes espirituais tomem consciência e orientem adequadamente, reconhecendo que não existe uma única ferramenta para lidar com essa questão”, finaliza Regio.
Sugestões a partir do estudo
Treinamento de profissionais de saúde: Capacitar médicos generalistas, clínicos em Unidades Básicas de Saúde (UBS) e médicos de família para lidarem com questões psiquiátricas, aprimorando a identificação e suporte a pacientes em risco.
Treinamento de professores: Ensinar educadores a reconhecer sinais de risco e encaminhar os estudantes para atendimento adequado.
Redução do acesso a meios letais: Implementar medidas como barreiras em locais de risco, por exemplo, instalando vidros de proteção em estações de metrô, pontes, viadutos etc..
Profundidade na abordagem: Evitar o uso de clichês e mensagens superficiais, como “valorize a vida”, que podem ser ineficazes para pessoas em sofrimento intenso. A campanha deve envolver ações mais concretas e compassivas.
Reformulação da campanha: Reorientar o Setembro Amarelo para ações mais efetivas ao longo de todo o ano, buscando impacto duradouro na conscientização e prevenção.
Discussão de políticas públicas: Promover debates sobre melhorias nas políticas públicas de saúde mental e na formação acadêmica, especialmente incluindo a prevenção ao suicídio nos cursos de Psicologia.
Fugir de banalizações: Evitar soluções simplistas e propostas que tratem o suicídio de maneira rasa, incentivando ações que validem o sofrimento emocional das pessoas e ofereçam suporte concreto.