Existe uma confusão seminal entre Israel ao qual a Bíblia se refere e os judeus que compõem o Estado moderno
Por Magno Paganelli
A igreja evangélica no Ocidente, particularmente na América do Sul, é um ambiente rico em crendices. Não deveria ser assim, por vários motivos, mas a matriz social nacional é marcada por baixo pensamento crítico e alta tendência a abraçar a notícia de primeira mão, a versão única ou “oficial” ou aquilo que lhe convém.
Por exemplo, não foram poucas as vezes que ouvi pastores, aqueles que deveriam zelar pela integridade e correção da informação passada de púlpito, afirmarem a plenos pulmões que “o brasileiro Osvaldo Aranha deu o voto de Minerva para a criação do Estado de Israel”, em 1948. Dois erros ocorrem aqui. Primeiro, que a assembleia da ONU que votou pela criação do estado judaico foi realizada em novembro de 1947; segundo, que nunca houve “voto de Minerva”, porque o placar foi 33 votos a favor, 13 contrários e 10 abstenções. Votos de Minerva são dados exclusivamente em caso de empate, o que flagrantemente não aconteceu.
Mas, um equívoco constrangedor é mais grave do que isso. Trata-se da confusão seminal entre, de um lado, o Israel ao qual a Bíblia se refere como sendo um grupo especial de pessoas que receberam promessas de Deus e aguardam o cumprimento pleno delas e, de outro lado, os demais judeus, especialmente a população que compõe o moderno Estado de Israel, como também os judeus espalhados por outras nações (estima-se que existam entre 12 e 14 milhões de judeus no mundo). Ao equivocar-se sobre quem serão os salvos entre os judeus, muitos na igreja evangélica são levados a outros erros ainda piores!
Para esclarecer a quem a Escritura Sagrada se refere quando diz que Deus tem um povo e esse povo é Israel, precisamos nos lembrar que já na escrita da Bíblia foi distinguido categoricamente que mesmo nos tempos bíblicos, nem todos os judeus seriam salvos. A salvação nunca foi adquirida por hereditariedade, por consanguinidade. Jesus chegou a dizer que até das pedras Deus pode fazer brotar filhos a Abraão: “Não fiqueis dizendo a vós mesmos: Abraão é nosso pai! Eu vos digo que até dessas pedras Deus pode dar filhos a Abraão” (Mateus 3.9).
O povo de Deus, no passado e no presente, é a comunidade de fé. Foi assim desde Abraão e assim é até hoje. Jesus e Paulo disseram que não são judeus legítimos (do ponto de vista da salvação) quem é geneticamente, mas quem o é pela fé. Mudar esse entendimento é criar uma aberração teológica, é incorrer em heresia.
Em tempo, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, a Bíblia se refere aos judeus que serão salvos, chamando-os de “remanescentes”: “Um remanescente voltará, sim, o remanescente de Jacó voltará para o Deus Poderoso” (Isaías 10.21) e “Assim, hoje também há um remanescente escolhido pela graça” (Romanos 11.5).
Na língua portuguesa, um remanescente é aquilo que sobra ou que resta, indicando não a totalidade, evidentemente, mas uma parcela do todo, e essa parcela não corresponde a todo e qualquer judeu étnico hoje vivo, mas exclusivamente àqueles que professam a fé em Jesus Cristo. Nem todo o povo judeu será redimido por Deus, nem no presente, nem no final dos tempos, nesse Estado de Israel que aí está. Somente os que tiverem a fé. O Apocalipse reafirma isso ao dizer que há um grupo remanescente a ser salvo, mas não todos (Apocalipse 7 e 14 são exemplos).
Dito isto, resta saber que os judeus que formaram originalmente o atual Estado de Israel não podem, jamais, ser confundidos com personagens como Daniel na Babilônia. Aquele orou arrependido por seus pecados e pelos pecados do seu povo e Deus o dirigiu numa grande obra (Daniel 9.20-27). Já os primeiros sionistas no séc. XIX não professavam sequer a fé judaica. Os sionistas são regidos por uma ideologia e como toda ideologia distorce a verdade por interesses nem sempre tão nobres, a Igreja evangélica brasileira deveria tomar consciência dessas sutilezas, a fim de não comprometer a sua missão em determinados setores, como as missões no próprio mundo árabe.
O sionismo é um termo criado pelo escritor judeu vienense Nathan Birnbaum, em 1885. Se constituiu, inicialmente, num movimento político com ênfase na diplomacia, e teve em Theodor Herzl (1860-1904), judeu nascido na Polônia, um de seus primeiros e maiores expoentes. O sionismo político (uma das oito vertentes dessa ideologia) não tinha qualquer interesse pelo judaísmo ou por questões judaicas em si, embora se valesse da consciência geral dos cristãos na Europa, especialmente na Grã-Bretanha) de que a Palestina fosse o antigo lar dos judeus, então espalhados por países do Oriente e Oriente Médio, África, Américas e por países da Europa, onde a ideologia nasceu.
O sionismo iniciou o movimento para reunir o povo judeu numa terra onde pudessem encontrar liberdade e desenvolver-se longe das perseguições. Os judeus da Europa sofreram uma série de perseguições em diferentes lugares e épocas, como Espanha, Áustria, Alemanha, Itália e outros. Mas isso não pode ser confundido pela Igreja brasileira como justificativa para apoiar uma ideologia. À Igreja cabe posicionar-se em favor de todo aquele que, arrependido, mostrar interesse pelo perdão de Jesus Cristo, o verdadeiro Messias, além de promover a reconciliação dos homens com os seus semelhantes e entre os homens e Deus: “[…] por meio dele reconciliasse consigo mesmo todas as coisas, tanto as que estão na terra, como as que estão nos céus” (Colossenses 1.20). Pautas políticas e ideológicas não entram na hermenêutica desse texto.
Cristo pôs fim às distinções raciais, religiosas, culturais e sociais, derrubando as barreiras; não podemos, nós cristãos, reerguê-las (Colossenses 3.11); antes, devemos anunciar as boas novas aos pobres, libertar os oprimidos e proclamar a volta do Senhor até que ele venha.
Magno Paganelli é pós-doutor e doutor pela USP, mestre em Ciências da Religião
(Mackenzie), professor, escritor e editor