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sábado, 20 abril 2024

Escravos do telefone: como se livrar da “dependência digital”

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“Se não visse alguma foto que alguém postou no Instagram, ficava doida” – Nathalia Fonseca do Carmo, universitária

É evidente que no mundo de hoje seja quase impossível viver desconectado, mas e quando o uso do celular é tão excessivo que prejudica a vida e as relações? O que fazer para não se tornar um escravo do telefone?

Por Fabiana Tostes

São 6 horas. A função despertador do celular o acorda. Você olha para a tela e vê as notificações das mensagens dos grupos da família, da faculdade, do trabalho, do bairro, do churrasco do fim de semana. O aplicativo de saúde lembra-o de tomar água, e a agenda apita com a relação dos compromissos do dia.

Você nem tomou o café da manhã e já checou o smartphone três vezes, sem conseguir ler nem metade das mensagens de WhatsApp.

Arruma-se para sair de casa, mas antes checa o app do clima, responde a algumas mensagens, envia vídeo motivacional e gif para alfinetar o colega. Abre o site de notícias para se informar sobre as manchetes do dia. Sai de casa com o celular na mão, pega o carro, acessa o aplicativo do trânsito, abre a pasta de músicas, faz selfie para postar no Facebook com a hashtag “BomDia”.

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Confere de novo as mensagens, curte algumas fotos postadas por amigos no Instagram. Digita uma frase de efeito no Twitter. Quase bate no carro da frente ao tentar baixar um vídeo. São 7h30, e boa parte do tempo, desde o acordar, foi gasto diante da tela do aparelho. É a descrição parecida da sua rotina? Cuidado! Você pode ser um dependente tecnológico, um escravo do telefone celular!

Não são recentes as pesquisas sobre o que o uso da tecnologia causa ao ser humano. Há quem a demonize e pregue a sua abolição, desde a TV até os mais modernos smartphones. E há também aqueles que defendem ser inevitável, no mundo de hoje, viver com a tecnologia e pregam que seu consumo deva ser regrado e limitado, não chegando ao ponto de roubar os relacionamentos e substituir a vida real.

“Quanto mais cedo você tem acesso à tecnologia, mais complicado é perceber a dependência. A criança precisa ter uma orientação digital, que não necessariamente tem que ser limitada, mas ela deve ser educada para o uso” – Andréa Jotta, psicóloga

Muitos pais, professores e líderes religiosos estão preocupados com o uso excessivo do celular – e de toda tecnologia e atividade que ele carrega – entre os jovens. Uma pesquisa recente encomendada pela Motorola e feita pelo Instituto Ipsos mostrou que quase metade (49%) dos que têm de 16 a 20 anos considera esse equipamento o melhor amigo. E 56% têm pavor só de pensar em perder ou ficar sem ele por alguns instantes. Embora os adolescentes e jovens sejam os principais alvos desses estudos, esse apego excessivo também se dá em outras faixas etárias.

SINAIS DE ALERTA

O celular tem substituído relacionamentos e muitas vezes ocupa o tempo que deveria ser empregado para atividades básicas como se alimentar, estudar e trabalhar. Tal conduta já foi notada pela terapeuta familiar e de casais Anna Eliza Simonetti, que com o marido, o pastor Heelender de Oliveira, está à frente da Primeira Igreja Batista de Goiabeiras, em Vitória, capital do Espírito Santo.

Ela apontou sinais de quando o consumo está excessivo e pode acarretar prejuízos não só ao usuário, mas também a toda a família.

“É preocupante quando a pessoa não consegue mais perceber sua existência fora ou além do celular, das redes sociais e de tudo que envolve essa tecnologia. Isso normalmente se traduz no isolamento social, inclusive da família, em queda de rendimento escolar e no trabalho, numa ansiedade quando a pessoa precisa ficar sem o aparelho. É um sofrimento muito grande. Normalmente as pessoas ao redor percebem e avisam, são sinais de alerta”, explica Anna Eliza.

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“Estamos perdendo a habilidade de nos relacionarmos de forma pessoal” – Anna Eliza Simonetti, terapeuta de famílias e de casais

Segundo ela, há muitos relatos de relacionamentos rompidos, amizades e casamentos, por causa desse comportamento desmedido. “Vi uma matéria recente que mostra que a internet já é o principal motivo de divórcio. Quantas vezes vejo mães que estão amamentando e ao mesmo tempo checando o celular, perdendo o contato olho no olho com o bebê, que é tão necessário. Pais que estão brincando com seus filhos, mas não largam o celular, perdendo a interação. Famílias que saem para jantar e, em vez de conversar, cada um está com seu smartphone. Pessoas que viajam ou estão nas igrejas que, em vez de aproveitar aquele momento único, de adoração, estão tirando foto para postar na rede social. Muitas vezes não percebem o momento vivido e deixam passá-lo”, afirmou.

O pastor Usiel Souza, da Primeira Igreja Batista da Praia do Canto, Vitória, tem a mesma percepção. Segundo ele, é preciso prestar atenção em alguns comportamentos para evitar consequências ruins.

“Quando não conseguimos deixar de atender uma ligação, quando precisamos conferir nossa rede social em intervalos cada vez mais curtos, quando não conseguimos conversar com as pessoas ou nos ligar a algo que esteja em curso diante de nós – como uma aula ou uma reflexão bíblica na igreja –, dando mais atenção ao celular do que às pessoas e aos fatos diante de nós… Esses são sinais claros de que o uso não está sendo saudável. Normalmente a pessoa não admite e diz que não tem nada a ver; que ela, se quiser, não usa e que, na verdade, nem usa tanto assim”, exemplificou o pastor.

“FICO ANSIOSA QUANDO A BATERIA ESTÁ NO FIM”

A universitária Nathália Fonseca do Carmo, 24 anos, descreve sua relação com o smartphone como “intensa”. “Até nos momentos em que estou no trabalho, costumo não largar dele. Algumas vezes porque uso para falar com alguns clientes, mas na maior parte do tempo é porque não consigo me desvencilhar mesmo. Ele não fica desligado em momento algum”, afirmou a jovem, que vive em constante atrito com os pais e amigos por causa desses excessos.

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Fonte: Revista Mundo Estranho/Editora Abril

“Constantemente alguém reclama que só me vê ao celular, ou alguma amiga minha chama minha atenção. Meus pais sempre se queixam disso”, disse a estudante de Arquitetura, que admitiu ficar ansiosa quando a bateria do telefone móvel está no fim ou quando esquece o carregador. “Quando sei que esqueci o carregador, já saio procurando quem possa me emprestar. Já fui várias vezes embora de um lugar para não ficar sem meu celular. Fico muito ansiosa quando a bateria está para acabar. Infelizmente isso acontece.”

Nathália, que é da Igreja Cristã Casa de Oração, disse que nunca procurou ajuda e reconheceu ter sido difícil identificar que havia algo de anormal. Mas afirma que já melhorou muito. “Antes eu era do tipo que, se não visse alguma foto que alguém postou no Instagram, ficava doida. Acompanhava 24 horas. Hoje eu não consigo mais fazer isso. A verdade é que a gente perde muita coisa do mundo real quando está conectado. Sinto que tenho menos diálogos do que poderia ter se não estivesse mais interessada em olhar para o meu telefone”, confessa.

DETOX DIGITAL

A experiência de Nathália não é única, tanto que no Brasil já há grupos e centros de apoio psicológico e psiquiátrico para tratar a dependência tecnológica. Em alguns casos, bastam algumas orientações via e-mail ou presencial, mas há outros em que são necessários o uso de medicamentos e internação. A psicóloga Andréa Jotta faz parte de um grupo da PUC-SP chamado Janus – Laboratório de Estudos de Psicologia e Tecnologias da Informação e Comunicação, que desde 2006 tem atuado diretamente com estudos, pesquisas e casos de dependência em tecnologia. O atendimento se baseia na troca de e-mails com orientações que

duram em torno de 20 semanas. A equipe atende a cerca de 20 pessoas por ano; em 2018 cinco já procuraram ajuda. “Nosso atendimento é por e-mail até para contemplar o perfil das pessoas viciadas, cuja tendência é não sair de casa, o que torna o serviço presencial muito difícil, não passando do primeiro ou do segundo encontro. Desde 2015, após a popularização dos smartphones, temos detectado uma ansiedade relacionada à falta do aparelho ou do fim da bateria”, disse a psicóloga, que normalmente é procurada por pais preocupados com os filhos adolescentes.

O grupo trata o distúrbio como comportamental. “Quanto mais cedo você tem acesso à tecnologia, mais complicado é perceber a dependência. A criança precisa ter uma orientação digital, que não necessariamente tem que ser limitada, mas ela deve ser educada para o uso. Se a criança cumpre todas as suas obrigações, vai ter pouco tempo para o uso da tecnologia, que só entrará na vida dela nos momentos de lazer. Os pais precisam controlar isso.

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“Creio que nossa experiência cristã seja naturalmente terapêutica. Ela nos inspira a relacionamentos” – Usiel de Souza, pastor da Primeira Igreja Batista da Praia do Canto

Acompanhar a criança e ensiná-la a entender seus próprios limites”, disse Andréa, ao lembrar que a tecnologia deve ocupar ainda mais lugares, além do celular. “Não teremos muita escolha, teremos de nos adequar. Num futuro não muito distante, o Wi-Fi estará presente em muitas outras coisas e lugares além do celular, e quem terá de optar a ficar em ‘off’ é o ser humano”, avaliou.

Já o Grupo de Estudos sobre Adições Tecnológicas (Geat) foi criado em 2006 por colegas psiquiatras que atendem em seus consultórios particulares na região Sul do país (a maioria em Porto Alegre/RS). “A iniciativa surgiu como uma maneira de começarmos a entender o que acontecia com algumas pessoas que passaram a ter inúmeros problemas comportamentais e emocionais relacionados às novas tecnologias.

Na época, era mais voltada para o uso excessivo e abusivo de jogos eletrônicos”, afirmou o psiquiatra da infância e da adolescência Felipe Picon, vice-coordenador do Geat. Além do atendimento individual, a equipe dá palestras em escolas e empresas sobre o tema. O especialista explica como se dá o tratamento, que só pode ser feito após avaliação completa. “É necessário verificar se há a existência de algum outro transtorno psiquiátrico (depressão, TDAH, fobia social, por exemplo), o que seria tratado com psicoterapia ou medicamentos. Não há nenhuma medicação específica para dependência tecnológica, mas há vários medicamentos que podem ajudar em sintomas específicos. A psicoterapia é o principal meio de tratamento, por permitir que o psiquiatra ou psicólogo ajude o paciente a compreender o seu consumo da tecnologia, possibilitando que ele faça um uso mais racional e saudável.

A tecnologia reflete o que estamos passando internamente e, em algumas situações, potencializa o que realmente temos dentro de nós. Nosso grupo não entende a tecnologia atual numa dualidade pior/melhor. Mas é claro que as conexões que a tecnologia possibilita aproximam pessoas que estão distantes fisicamente e podem distanciar pessoas que estão próximas fisicamente. Nesse aspecto, os smartphones são os grandes atores”, afirmou.

APOIO ESPIRITUAL

As igrejas e particularmente as lideranças que atuam na acolhida pastoral também têm fundamental importância no processo de ajudar os fiéis a equilibrar o campo real com o virtual, dando atenção aos relacionamentos e a vida como um todo. Uma dica citada pela terapeuta Anna Eliza é “dividir os espaços”.

“Cada espaço que nós habitamos requer de nós uma presença completa. Se eu estou no trabalho, na escola, na igreja, esses espaços exigem que eu esteja ali corporalmente, com minha atenção, meusafetos, meus sentimentos; eu preciso deixar o meio virtual um pouco de lado para que eu possa interagir. Estamos perdendo a habilidade de nos relacionarmos de forma pessoal, tem-se perdido o contato do mundo real, e vejo essa situação com preocupação. Não vou demonizar a virtualidade, mas se percebe que não temos tido o equilíbrio necessário. No mundo virtual, você pode escolher mostrar o melhor ângulo, pode bloquear pessoas que o incomodam. Já o mundo real exige da gente mais resiliência, empatia com o outro, adoção de uma forma mais polida de falar. O mundo virtual dá um certo conforto e acaba nos infantilizando, mas o mundo real exige de nós mais maturidade para lidar com os relacionamentos”, avaliou Anna Eliza.

Para o pastor Usiel, a Bíblia também pode ajudar nesse processo. “Ela não tem o propósito de ser um repositório de respostas para cada novo desafio do nosso mundo, mas apresenta princípios que podem ser aplicados. Por exemplo, uma das marcas do fruto do Espírito é o domínio próprio, a apacidade de nos governar (Gl 5:22-23). A dependência, seja de que tipo for, representa o contrário disso. Creio que nossa experiência cristã seja naturalmente terapêutica. Ela nos inspira a relacionamentos, a reflexões, a amar a Deus e ao próximo. Ela nos inspira a servir. Tudo isso constitui-se um caminho que muito nos ajuda a equilibrar melhor nossa vida e comportamentos”, afirmou o pastor Usiel.

Ouça a matéria

Esta entrevista é uma republicação exibida na Revista Comunhão – junho/2018, produzida pela jornalista Fabiana Tostes e atualizada em 2021 (Priscilla Cerqueira). Fatos, comentários e opiniões contidos no texto se referem à época em que a matéria foi originalmente escrita.

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