Anteprojeto criado por uma comissão de juristas foi apresentado no Senado e propõe mudanças que abrem a porta para o casamento entre pessoas do mesmo sexo
Por Michelli de Souza
Em abril deste ano, o Senado recebeu o anteprojeto de reforma do Código Civil, documento elaborado por uma comissão de 38 juristas. O documento ainda está em análise pelos senadores para, então, ser protocolado como Projeto de Lei (PL). No entanto, o texto, com mais de mil artigos, vem gerando uma série de controvérsias entre entidades evangélicas e advogados cristãos, tendo em vista que alguns pontos de mudança atingem diretamente os valores defendidos pelo Cristianismo.
Antes mesmo de o anteprojeto ter sido apresentado em Plenário, o Conselho Diretivo Nacional da Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure) publicou uma nota, no dia 8 de março deste ano, apontando as mudanças que a entidade considerou preocupantes. Entre elas, está a alteração da redação do artigo 1702, que trata do casamento, acrescentando, ao lado de “sociedade conjugal” e “união estável”, o termo “sociedade convivencial”.
Segundo consta na nota da Anajure, “Tal expressão indefinida, acrescida ao texto como categoria distinta de união, pode vir a servir de arcabouço para o reconhecimento, no próprio Código, de vínculos alternativos, tais como as chamadas ‘uniões poliafetivas’”.
O presidente da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB/Nacional), Gilberto Garcia, destacou outro ponto referente ao título do casamento. Ele pontuou que, com a nova proposta, no lugar da expressão “homem e mulher” entraria “pessoas”. “Abre-se total leque para que casamentos entre pessoas de sexos diferentes ou de sexos iguais possam ser realizados, daí a relevância de que os estatutos sejam juridicamente embasados na Constituição Federal, no Código Civil, e na Bília Sagrada, que tem os dogmas teológicos de cada igreja ou convenção, que são a inspiração de ideologias denominadas de conservadoras”, salientou o advogado.
Ainda não se sabe se tal proposta será aprovada. No entanto, na visão de Garcia, essa discussão acende um alerta para as igrejas, que correm o risco de terem de realizar casamento religioso com efeito civil entre pessoas do mesmo sexo. Isso porque o anteprojeto legaliza no Brasil o casamento homoafetivo, hoje fundamentado numa Resolução do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), emitida pelo ministro Joaquim Barbosa, à época Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF).Para o jurista, as igrejas evangélicas devem se mobilizar para a criação de regramentos eclesiásticos doutrinários válidos, iniciativa que ele chama de “blindagem estatutária”.
“Esse é um debate que se abre, em meu modesto entendimento: que o Estado não poderá obrigar a igreja a fazê-lo, com base na normatização constitucional da Inviolabilidade de Crença (Artigo 5º, Inciso VI) e Separação Igreja-Estado (Artigo 19, Inciso I), da Constituição Federal, sendo fundamental que a igreja crie regramentos eclesiásticos doutrinários para se proteger juridicamente de pautas denominadas de progressistas, inclusive a ideologia de gênero. Nós não temos, como a Igreja Católica, um código de direito canônico, um regramento único para todos. Cada igreja evangélica, cada convenção, tem um estatuto”, ponderou Garcia.
O presidente da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa do IAB/Nacional explicou que a Igreja está resguardada para realizar cerimônia religiosa, pois tem direito de fazê-la apenas para os de sua comunidade de fé. No entanto, se o casamento civil for aprovado, da forma que está no anteprojeto, entre pessoas e não entre homem e mulher como prevê o vigente Código Civil, no caso do casamento religioso com efeito civil, abre-se uma lacuna até para casamentos poliafetivos. “É preciso resguardar, criar regulamentos eclesiásticos doutrinários, como outros gruposreligiosos, inclusive os católicos, já têm, para não serem obrigadas (as igrejas) a realizar cerimônias com efeito civil que afrontem a sua fé”, salientou Garcia.
Respeito à liberdade de consciência cristã
A doutora em Sociologia e Direito Fernanda Pimentel acredita que o governo e as instâncias superiores precisam respeitar a liberdade de consciência cristã. Ela citou, inclusive, o caso das Testemunhas de Jeová, adultas e capazes, que ganharam o direito de recusar procedimento médico que envolva transfusão de sangue após decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), no último dia 25 de setembro.
“O que nós precisamos, como cristãos, é que decisões como essa sejam recorrentes. Que a liberdade de consciência cristã seja respeitada. Por exemplo, o médico cristão não pode ser obrigado a fazer um aborto, mesmo que seja um aborto legal. Ele tem uma objeção de consciência e eu creio que em um Estado laico isso deve ser respeitado”, defende Pimentel.
Na visão da jurista, o anteprojeto deveria ter sido criado a partir de debates com todos os segmentos da sociedade, inclusive os religiosos, os que dizem respeito a todas as religiões protegidas pela Constituição. “O Código Civil abrange todas as esferas da nossa vida. Seria importante ouvir a diversidade de grupos da sociedade brasileira, que é multifacetada”, reitera.
Entenda o que é o anteprojeto
Em agosto do ano passado, foi criada uma comissão de juristas para apresentar um anteprojeto de atualização da Lei nº 10.406, de 2002 – o Código Civil. A Comissão foi presidida pelo ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Luis Felipe Salomão e composta por 38 membros. Em setembro, a comissão de juristas abriu um canal de sugestões, que poderiam ser feitas por qualquer cidadão por meio de e-mail, para aprimoramentos da legislação. Em janeiro deste ano, o anteprojeto foi concluído e, antes mesmo de ser apresentado, o senador Eduardo Girão (Novo-CE) foi a Plenário para pontuar que o documento apresentava uma carga ideológica.
No mês de abril, o anteprojeto foi concluído e apresentado para ser debatido em Plenário, em sessões temáticas, com alguns setores sociais. De acordo com informações da Agência Senado, foram analisadas 280 sugestões da sociedade e realizadas audiências públicas, tendo como resultado um texto com mais de mil artigos. Neste mesmo mês, o documento foi distribuído para os senadores e, até este momento, aguarda análise dos parlamentares.