Uma tradução bíblica deve ser fruto de elevada qualidade e empenho na produção, que aliás é para as igrejas e não necessariamente para especialistas
Por Lourenço Stelio Rega
Especialista em grego do Novo Testamento, professor de exegese e crítica textual. Autor da gramática “Noções do Grego Bíblico”, publicada pela Edições Vida Nova desde 1986, com mais de 50 mil exemplares distribuídos. Para começar, vamos lembrar que o texto bíblico, não é um mero produto que algum editor ou editora possa ter como uma mercadoria comercial. Uma tradução bíblica deve ser fruto de elevada qualidade e empenho na produção, que aliás é para as igrejas e não necessariamente para especialistas.
O povo brasileiro não pode ser considerado como um mero consumidor de um livro qualquer e que daqui, cerca de uns 2 anos ou mais, tenha se adaptado às imperfeições de uma tradução bíblica e se esquecido dos embates institucionais que agora estamos infeliz e lamentavelmente assistindo. O nosso povo merece mais consideração. Minhas observações a seguir, de modo nenhum, desmerecem o árduo empenho da comissão de revisão, pois o trabalho de tradução bíblica é algo complexo e envolve muitos detalhes e variáveis.
O que pretendo é destacar necessidades de reconsideração que a comissão necessita fazer para que o texto seja adequado para um lançamento festivo que nosso povo brasileiro merece. O espaço disponível não permite ampliar algumas considerações, inclusive sobre a história inicial da NVI (Nova Versão Internacional) no Brasil, que foi conquistando aceitação, credibilidade e hoje diversas editoras publicaram livros, dicionários e outras obras tendo como base o seu texto.
Quando tomei conhecimento de que estava havendo uma revisão do texto em português, compreendi que seria um caminho normal, pois, em termos de tradução bíblica, é padrão da United Bible Societies (UBS) que haja uma revisão pelo menos a 25 anos para línguas minoritárias e cerca de 20 anos ou menos para línguas majoritárias, como a nossa, tendo em vista adequações às mudanças do idioma atual, semânticas, o surgimento de neologismos etc. de modo que se possa manter o texto bíblico compreensível trazendo o seu significado original para os novos momentos da comunicação.
Naquele momento solicitei ao representante da Biblica.Inc. para a América Latina, sr. Esteban Fernandez, os critérios que estavam sendo adotados para esta revisão da tradução, que me prometeu enviar, mas nunca o fez. Isso, de certa forma traz enormes dificuldades para compreendermos os detalhes dessa revisão.
Então o que nos resta é fazer uma análise por amostragem do trabalho, e, dentro do espaço disponível, é possível citar dois pontos importantes e mais um detalhe.
Esclareço que, antes de ter escrito estas notas, assisti a duas lives com a participação de membros da Comissão buscando explicar alguns detalhes do trabalho de revisão. Algumas explicações foram razoáveis, mas nem todas. Confesso que não compreendi os motivos da ausência de membros da comissão original, que muito poderia contribuir para a comissão de revisão com experiência e expertise.
Em primeiro lugar, a revisão em formato impresso traz um encarte assinado por James Counter (ilegível) que não consegui descobrir sua função nos meios oficiais, que afirma “A Igreja é o público-alvo primordial, tornando a NVI adequada para uso na adoração, leitura devocional particular e no estudo da Palavra de Deus […]”. Apesar dessa informação, não me parece que houve um trabalho de “testagem” junto aos leitores-destino, pelo menos em termos de amostragem.
Esse procedimento é um protocolo adotado pela UBS e associadas para aferir a compreensão da tradução, além de submeter alguns procedimentos técnicos para obter feedback. Os dois itens a seguir demonstram essa desconfiança minha.
Em segundo lugar, quando temos uma revisão de algo é para melhorar sua performance, seu alcance, ainda mais com uma tradução bíblica. Então, confesso que não compreendi os motivos pelos quais na NVI/2023 houve uma regressão na utilização da designação de pesos e outras medidas que devem ser aproximadas aos leitores comuns, como foi feito na NVI/Original utilizando o sistema métrico e sistemas conhecidos e adotados aqui em nosso país, mas que na NVI/2023 não se seguiu esse princípio, regredindo-se com a adoção das formas originais, que o público comum não compreende. Por que não foi feita uma tabela de equivalência para que pessoas interessadas pudessem consultar?
Em terceiro lugar, e, para mim, mais grave, é descobrir o que levou a comissão a suprimir versículos no corpo do texto da tradução e seu remetimento para notas de rodapé (portanto fora do corpo do texto) informando que não estavam presentes nos manuscritos. Isso traz dificuldades sem conta para o leitor comum, tanto que as demais traduções utilizam recursos adicionais para explicitar o mesmo fato, mas mantendo o texto no corpo da tradução, seja entre colchetes, seja mantendo o texto com a adição notas de rodapé com estas informações sobre manuscritos, como a NVI/Original fez.
Do ponto de vista prático, quando há impressão da Bíblia em formato menor, em geral as notas de rodapé ficam ilegíveis e poderão até ser suprimidas. Talvez seria interessante saber os motivos pelos quais a comissão não seguiu essa prática em textos de natureza semelhante tais como o final do Evangelho de Marcos (16.9-20) e o texto sobre a mulher adúltera no Evangelho de João (7.53-8.11)?
Pelo espaço que temos, não caberia aqui uma discussão sobre manuscritos da Bíblia ou mesmo sobre crítica textual. Do ponto de vista técnico, esse procedimento poderia até ser compreendido por especialistas, mas do ponto de vista da igreja e de pessoas comuns dificilmente o será. Assim, a busca talvez por uma precisão técnica poderá trazer enormes dificuldades para a aceitação desta revisão.
Em quarto lugar, não foi possível fazer uma análise completa em termos teológicos de alguns temas fundamentais básicos. Então isso precisará, em futuro próximo, ser feito com mais profundidade.
O que pude fazer foi por amostragem, não tendo sido possível encontrar situações complexas. A amostragem também foi feita comparando-se os textos originais, mas também com a Almeida Revista e Atualizada (ARA), Nova Almeida Atualizada (NAA), Nova Versão Transformadora (NVT) e a própria NVI/original (atual).
Pelo espaço aqui, não é possível apresentar todo este trabalho de amostragem, mas apenas citar um texto que talvez possa trazer preocupação maior que é Gênesis 2.18: “Então, o Senhor Deus disse: Não é bom que o homem esteja só; farei para ele uma aliada que lhe seja semelhante.” Há uma nota de rodapé na revisão: “Ou uma auxiliadora que lhe corresponda; também no versículo 20”.
Ao que parece as traduções clássicas seguem a tradição da Septuaginta (LXX) para estes textos. A tradução da NVI/2023 segue mais de perto a construção do texto em hebraico. Algo que alguém possa ainda discutir.
Vi outros textos chaves, por exemplo, sobre o tema de “gênero” (Gn 19.4-7; Lv 18.22,23; 20.13; Jz 19.22,23; Rm 1.26-28; 1Co 6.9-11; 1Ts 4.3-5; Ap 21.8) e, ainda que possa haver alguma compreensão diferente, penso que, do ponto de vista teológico a Comissão preservou, nestes textos principais sobre o tema, o sentido bíblico da heteronormatividade binária (heterossexualidade), não dando margem para interpretações que avalizem a cultura de gênero ou homossexualidade.
Tendo em vista a complexidade na comunicação hoje, inclusive virtual, penso ainda que qualquer atribuição de crítica sobre a NVI/2023 precisa sempre ser acompanhada de demonstração técnica (em termos do trabalho da tradução) e de argumentação bíblico-teológica clara e segura, para evitarmos qualquer atribuição de juízo de valor sem os devidos fundamentos e isso poderá ser feito com mais calma também por colegas que atuam no campo da pesquisa.
Diante de tudo isso o que se espera:
- Que o Board e a presidência da Biblica.Inc suspenda imediatamente qualquer lançamento da NVI/2023 tomando ciência da gravidade do cenário institucional que foi se instalando nos últimos anos, o que demonstrou não estar havendo a necessária habilidade e conhecimento suficiente do cenário nacional e que a Biblica Inc. assuma a gestão dessa indesejada crise que vai além do impasse institucional;
- Que o Board e a presidência da Biblica.Inc compreenda que há enormes diferenças entre o mundo hispânico religioso e evangélico da América e o mundo e religioso do Brasil. Aliás, brasileiros se consideram mais como sul-americanos do que latino-americanos. Diferenças desde a gênese e construção das matrizes religiosas dos dois mundos ainda que estejam em um mesmo continente. Portanto, torna-se necessário que haja uma direção específica para o Brasil, que seja diferente da coordenação do mundo hispânico. Essa situação é fruto de um equívoco de irmãos do Hemisfério Norte que se estende a longo tempo.
- Que o Board e a presidência da Biblica.Inc. mobilize a Comissão revisora da NVI a ajustar a revisão nestes e em outros pontos que forem levantados por especialistas e biblistas, que o trabalho inclua o alcance às igrejas de modo que possam dar feedback sobre a compreensão da revisão.
- Que o Board e a presidência da Biblica.Inc. só venha a pensar em lançar a NVI/2023 quando tudo estiver estabilizado, inclusive o aspecto institucional, e que seja feito um preparo prévio de esclarecimentos ao público evangélico brasileiro e seus líderes, para buscar garantir a minimização de algum possível impacto negativo dessa revisão, diante do complexo cenário evangélico brasileiro e suas atuais polaridades.
- Que há necessidade dos responsáveis em planejar com detalhes o lançamento da NVI/2023 de modo a conquistar seu espaço no cenário de traduções bíblicas no mercado evangélico brasileiro e envolvendo todos os parceiros legalmente licenciados no Brasil. Lembrando que o que ocorreu em maio passado não foi um lançamento, mas uma apresentação da revisão, conforme comunicados oficiais.
Algumas observações importantes ainda:
• Há enormes riscos para a história da NVI no Brasil que já conquistou seu espaço e credibilidade, pois se este processo com a NVI/2023 continuar, seja diante desse cenário institucional turbulento, seja sem que o trabalho da comissão seja retomado para estas e outras providências, o público evangélico brasileiro tenderá a desconsiderar não apenas a NVI/2023, mas toda esse história da própria NVI no Brasil.
• Tudo isso trará enormes prejuízos editoriais, pois inúmeros livros, dicionários, e outros textos, traduzidos ou não, foram baseados e utilizam a NVI como seu texto de referência e poderão ter de serem revisados, reimpressos por exemplo.
Concluo compreendendo que a Biblica.Inc. e sua presidência precisam, com urgência, assumir o comando dessa situação e tomar as providências necessárias, pois estamos tratando da Palavra de Deus e não de um livro comum, produto comercial de venda.
Lourenço Stelio Rega é eticista e Especialista em Bioética pelo Albert Einstein Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa (Hospital Albert Einstein). Membro da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB).