Diretor da Missão Aliança no Brasil afirma que o Ide de Jesus não se resume apenas em oferecer alimento espiritual, mas também em acolher os mais vulneráveis nas suas necessidades básicas
Por Michelli de Souza
Como está escrito em Marcos 16:15, Jesus tem um chamado para a Igreja: “Ide por todo o mundo, proclamai o Evangelho a toda criatura”. No último 20 de outubro, quando se comemorou o Dia Mundial de Missões, certamente esse foi o versículo mais lembrado pelo povo de Deus. No entanto, o Ide de Jesus vai muito além da pregação da Palavra. Fazer missões à moda de Cristo é também acolher os mais necessitados, que precisam ter o corpo nutrido para, assim, estarem preparados para nutrir a alma.
É com base nessa premissa que o pastor Bebeto Araújo norteia a sua obra missionária. “Para Jesus não tinha dicotomia entre proclamação e serviço. Era uma coisa só. Quando as pessoas estavam com fome, a resposta de Jesus não era culto. Era pão e peixe. Quando as pessoas estão perdidas, como ovelhas sem pastor, aí é palavra, ensino, orientação. Quando as pessoas estavam enfermas, a resposta de Jesus era um toque que curava. Então, a igreja precisa voltar os olhos para Jesus, se ela quer participar da missão de Deus no mundo. Ela precisa priorizar o que Jesus prioriza”, enfatizou.
Araújo liderou por 17 anos a Igreja Vinha Monte Horebe, em Itaperuçu (PR), e atualmente segue a caminhada missionária em dedicação exclusiva na direção da Missão Aliança no Brasil. Ele também trabalha com processos de formação e mobilização para a prática diaconal com pastores. Confira, a seguir, a entrevista completa do missionário para a Comunhão:
Comunhão: O que o levou a trabalhar com pessoas em situação de vulnerabilidade?
Bebeto Araújo: Não quero ser simplista, mas foi a leitura que eu fiz do Evangelho. Eu tive o privilégio de poder ler o Evangelho antes de entrar na igreja evangélica. Isso foi fundamental para a minha caminhada de fé. Para mim, conversão foi uma experiência de mudança de padrão mental, de cosmovisão, de perspectiva, de razão para existir no mundo. Um novo jeito de olhar para a vida, para as pessoas, para a cidade, para a sociedade. E essa mudança foi fruto de um processo de leitura da Bíblia, que eu recebi de presente de uma garota de 15 anos, numa favela, na cidade de Recife. Ela me desafiou a ler a Bíblia. Eu nunca tinha pego um livro com zíper na minha vida (risos).
Eu sou engenheiro florestal e me especializei na área de gestão ambiental. Fui trabalhar em um projeto de urbanização de favelas. Foi quando as coisas começaram. Eu estava surpreso com aquele processo, porque não era um livro [a Bíblia] muito atrativo. Foi a primeira vez que eu peguei uma Bíblia na vida. E confesso que o Evangelho me encantou. Esse jeito de Jesus acolher as pessoas que ninguém queria acolher. De Ele abraçar as pessoas que ninguém queria abraçar. De servir às pessoas que ninguém queria servir. Tratar como gente aqueles que o sistema religioso coisificava e descartava. E, um dia, no meu quarto, depois de oito meses lendo [a Bíblia], eu fiz uma oração – e não sabia que era uma oração: “Eu nasci para ser livre. E se para ser livre tem que andar contigo, eu não sei nem quem é o Senhor, mas eu quero”.
E foi como se eu tivesse ganhado novas lentes para ler a vida. Alguns dias depois, eu estava andando no centro de Recife e comecei a observar pessoas que nunca tinham me chamado a atenção. Que eram pessoas em situação de rua. Elas eram praticamente invisíveis. E eu parei numa rua, um dia, olhando para um grupo de pessoas que estava na calçada. Eu falei assim, “Jesus, se o senhor estivesse aqui, o que o senhor faria para essas pessoas?”. E eu, achando que estava meio maluco, é como se tivesse escutado uma voz dizendo assim “eu não deixaria ninguém dormir com fome”.
E o que ocorreu a partir daí?
Eu fui para casa e chamei dois amigos e falei para eles o que tinha acontecido. Eles não eram cristãos e eu também não me considerava cristão. Só estava lendo a Bíblia e tinha um negócio acontecendo na minha vida. E eu falei para eles “vamos para a rua à noite. Tem gente com fome na rua”. E nós preparamos umas garrafas de café com leite e uns pãezinhos com queijo. E fomos para a rua. E aí foi a minha primeira experiência com uma pessoa em situação de vulnerabilidade extrema.
E eu me aproximei de um senhor à noite, ele estava se preparando para dormir. E eu falei assim “o senhor aceita um pãozinho com queijo, um café com leite?” E ele olhou para cima, estava sentado no chão, e falou “irmão, foi Deus que me mandou você aqui. Eu estava pedindo a Deus para não dormir mais uma noite com fome”. E quando eu estava saindo, ele falou, “você veio aqui porque Deus não esqueceu de mim”. Eu falei, “caramba, se isso aqui é o Evangelho, eu quero isso para a minha vida”.
Na sua opinião, a Igreja está preparada para acolher todas as pessoas, nas suas diferenças raciais, econômicas e sociais?
Eu não quero fazer generalizações, mas igreja tem dificuldade para acolher as pessoas que não pensam como elas. A gente tende a querer se apropriar da verdade de uma maneira que basicamente aquilo que a gente fala é o que vale. Existe muito preconceito. A igreja deveria ter mais característica de movimento. A igreja deveria ser mais orgânica, menos institucional. Eu não tenho nada contra a instituição. Eu venho operando a minha fé, a minha espiritualidade, a minha vocação por meio de instituições. O problema é quando a instituição vira fim e engole a missão. A instituição deve estar a serviço da missão. Quando as pessoas que importam para Jesus não importam para a Igreja de Jesus, nós precisamos parar, nos arrepender, revisitar o Evangelho e recomeçar.
O que o senhor quer dizer ao afirmar que a igreja deveria ser mais orgânica?
Ela deveria ser menos centrada no culto, no templo, no pastor, no púlpito. A Igreja, o movimento de Jesus, se inicia sem esses elementos. Então eu penso na igreja como um organismo vivo, uma comunidade de pessoas que está em movimento, participando ativamente daquilo que Deus está fazendo no mundo. E com esse diferencial e essa característica central, que a gente encontra no movimento de Jesus, de ser uma comunidade de homens e mulheres. Eles estão nessa comunidade de fé por causa da misericórdia de Deus, ninguém está na comunidade de fé por mérito. É misericórdia. Então, se a gente é o que é por causa da misericórdia de Deus, a gente não tem o direito de negar uma porção dessa misericórdia para quem a gente encontra caído na beira da estrada. O Evangelho é uma boa notícia. E a boa notícia é que Deus te ama. E não tem nada que você possa fazer que leve Deus a te amar menos.
Como o senhor avalia a forma como a Igreja lida com a pauta da assistência aos necessitados?
É difícil falar da Igreja do Brasil, porque ela é uma colcha de retalhos. Ela é tão diversa! De uma maneira geral, o evangélico tem alguma sensibilidade para questões relacionadas ao suprimento das necessidades básicas de seus membros. O socorro aos necessitados e as práticas de boas obras não é algo a ser realizado por um pequeno grupo de pessoas mais sensíveis com as questões sociais. Nós estamos falando sobre diaconia. Toda vez que a gente encontra a palavra “serviço”, ou “ministério”, essa palavra é a raiz da diaconia. A diaconia é um estilo de vida de quem segue Jesus na vida. Jesus entende a sua missão no mundo como a missão de caráter diaconal. A comunidade que brota, a comunidade que nasce ao redor de Jesus, a comunidade que tem Jesus no centro, ela é, por natureza, uma comunidade diaconal.
Então, eu diria que tem igrejas com mais sensibilidade aos temas da assistência aos vulneráveis. Outras, bastante insensíveis e indiferentes. Algumas têm sensibilidade, mas essa sensibilidade não ultrapassa os seus portões. Ela tem os seus. E outras são mais sensíveis e vão para fora dos seus portões e atende àqueles que ela encontra caídos à beira do caminho. Muitas comunidades de fé – e aí, para mim, isso é um problema – ficam no nível do assistencialismo. Quando você sai de um estado de indiferença, de insensibilidade com a dor do outro, e se move para servir, para acolher, para suprir uma necessidade, seja de que natureza for, isso já é um movimento importante.
No Brasil, o assistencialismo e a luta pelos pobres foram causas muito levantadas pelos católicos e pelos movimentos progressistas. No entanto, à luz da Bíblia, essas sempre foram causas de Jesus. Como o senhor vê a atuação da igreja evangélica nesse contexto?
A Igreja deveria parar de pensar que o tema da pobreza é apenas um tema social. O tema da pobreza é um tema absolutamente bíblico. Nós vamos perceber em toda a Bíblia que o coração de Deus voltado para o pobre. E que Deus desafia o seu povo a dar uma atenção diferenciada para essas pessoas. Quem são essas pessoas? Os mais vulneráveis: o pobre, a viúva e o estrangeiro.
Parte significativa da liderança evangélica brasileira precisa enxergar, iluminados pela Palavra de Deus, que o combate à pobreza e a promoção da Justiça não é uma pauta ideológica ou partidária. A justiça é um valor central da Bíblia. A Bíblia diz que Deus é justo. A Bíblia diz que Deus ama a justiça. O que eu vejo, e que para mim é uma tragédia, é que há muitos cristãos que ainda dividem essa vida em duas esferas, uma sagrada e uma secular. E esse modo de operar a fé é um grande equívoco, porque isso não tem sustentação nas Escrituras. Isso é platonismo.
Quando se fala em missões, logo vem à mente das pessoas o cenário de um cristão que viaja para outras nações para pregar o Evangelho. É isso o que significa missões ou seu sentido está para além disso?
Muito além. Você não precisa ir para longe. Você pode atravessar a rua, em vez de atravessar o oceano. A missão da igreja é servir à Missão de Deus, certo? Então, se a missão da igreja é servir à Missão de Deus, a gente tem que perguntar “qual é a Missão de Deus? Como é que a gente pode participar daquilo que Ele está fazendo?” Então, a igreja não tem agenda própria. A igreja não é autônoma, no sentido de que ela faz o que ela quer. Nós temos um modelo para fazer missão. O modelo é Jesus de Nazaré. E Jesus assume essa responsabilidade de ser modelo e paradigma para a igreja.
Qual a responsabilidade do cristão para com os vulneráveis?
A igreja que está disposta a servir à Missão de Deus, ela tem que voltar os olhos dela para Jesus. Como é que Jesus fez isso? Por exemplo, no ministério de Jesus, a proclamação e demonstração do amor de Deus era algo inseparável. Para Jesus, não tinha dicotomia entre proclamação e serviço. Era uma coisa só. Quando as pessoas estavam com fome, a resposta de Jesus não era culto; era pão e peixe. Quando as pessoas estão perdidas, como ovelhas sem pastor, aí é palavra, ensino, orientação. As pessoas estavam enfermas, a resposta de Jesus era um toque que curava. Então, a igreja precisa voltar os olhos para Jesus se ela quiser participar da Missão de Deus no mundo. Ela precisa priorizar o que Jesus prioriza.
Ela precisa amar o que Jesus ama. E ela precisa também não tolerar o que Jesus não tolera. E qual é a responsabilidade do cristão? Servi-los e criar para eles oportunidades para que eles possam desfrutar de uma vida plena. A pobreza e a miséria violam a dignidade humana. E afetam o coração de Deus. O amor ao próximo é um imperativo bíblico, não é uma sugestão.
Em relação às ações da Missão Aliança, qual é seu principal propósito junto aos acolhidos e a mensagem central que almeja passar para a sociedade?
O nosso público prioritário são pessoas que nasceram em situação de desvantagem social e econômica. Nós desenvolvemos ações que visam a ajudar os mais pobres a recuperar sua identidade como filhos amados de Deus, desenvolver as suas potencialidades e a exercer as suas vocações para o bem-estar da coletividade.
Uma mensagem central que buscamos passar, por meio de palavras e ações, é que, desde uma perspectiva bíblica, a pobreza não é inevitável. Ela não faz parte do projeto de Deus para a humanidade, pelo contrário. O desígnio de Deus é que todo ser humano tenha plenas possiblidades de realização.