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terça-feira, 23 abril 2024

Depressão: doença ou problema espiritual?

A doença é a que mais afeta a população mundial, mas ainda é tratada como problema espiritual dentro e fora da igreja.

Considerada pela ciência como o “mal do século”, a depressão tem vitimado um número cada vez maior de pessoas. Por isso, discussões e estudos acerca do tema ganham mais espaço em consultórios de médicos e psicanalistas, no ambiente familiar, em escolas e em igrejas, o que tem aquecido o debate sobre o que realmente é depressão, muitas vezes confundida com possessão demoníaca.

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Em 2017, a Organização Mundial da Saúde (OMS) lançou a campanha “Vamos Conversar”, avaliando as últimas estimativas sobre o assunto, que apontavam mais de 300 milhões de pessoas no planeta vivendo com o problema, um aumento de mais de 18% dos casos entre 2005 e 2015.

Médico psiquiatra e psicoterapeuta formado pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Jovino Araújo observa que a mente humana tem muitos mistérios. Há mais de um século foram formuladas teorias que explicam o funcionamento de nossas emoções, prevendo uma área inconsciente do pensamento. Muitas coisas que acontecem com os seres humanos e suas emoções não se justificam pela lógica. “Isso não é motivo para que expliquemos o que é desconhecido através de ideias espirituais. Essa associação pode até atrapalhar uma abordagem mais correta para um problema que é apenas de saúde e que poderia ser adequadamente tratado por um médico”, afirma ele.

Depressão: doença ou problema espiritual?
“Somos uma mistura de corpo, mente e alma, mas a ciência já está avançada e não podemos ter uma postura que seria mais aceitável em séculos passados, quando as manifestações de doenças mentais eram confundidas com problemas espirituais” – Jovino Araújo, médico psiquiatra e psicoterapeuta

De acordo com o especialista, depressão prolongada afeta estruturas cerebrais como o hipocampo, área responsável pela atenção, memória e raciocínio, o que gera mudanças na forma de pensar e de reagir, podendo causar até mesmo delírios. E esse sintoma algumas vezes é confundido com possessão demoníaca, o que é um erro. “Somos uma mistura de corpo, mente e alma, mas a ciência já está avançada, e não podemos ter uma postura que seria mais aceitável em séculos passados, quando as manifestações de doenças mentais eram confundidas com problemas espirituais.”

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A depressão é uma doença que apresenta não apenas sintomas como desânimo, cansaço, falta de interesse por desempenhar algumas tarefas ou tristeza profunda. Sua manifestação pode desencadear vários sintomas, entre eles ansiedade, inquietude, dificuldade de concentração, perda ou excesso de sono, dores de cabeça e até mesmo problemas digestivos.

“Larga de frescura!”; “Pra que tanto drama?”; “Eu não aguento mais esse seu mau humor!”; “Que preguiça, hein!”; “Quanta agitação! Concentre-se!”. Essas são afirmações comuns de serem ouvidas por pessoas que sofrem de depressão e que possivelmente ainda não identificaram o problema. Ainda que o diálogo sobre o assunto esteja sendo ampliado, há quem resista em aceitar a existência e o tratamento da doença, bem como a necessidade de atenção especial e apoio aos que sofrem vitimados por ela, o que dificulta muito o alcance da cura.

Pessoas de todas as idades podem ser acometidas, mas a incidência é maior na população economicamente ativa, salienta a psicóloga Carolina Huguett Batista, especialista em Neuropsicologia, Reabilitação Cognitiva e Terapia Cognitiva Comportamental. “Estudos mostram que crianças e idosos acima de 70 anos têm uma prevalência menor de ocorrência da doença. Todavia, percebe-se uma incidência uniforme entre as idades de 20 a 70 anos para seu surgimento, sendo as mulheres mais propensas que os homens”, destaca ela, que é membro da Igreja Evangélica Vem, em Vila Velha (ES).

Depressão: doença ou problema espiritual?
“A perda da força é resultante de uma desorganização hormonal cerebral. Os neurotransmissores motivadores podem baixar por fenômenos genéticos, circunstanciais cumulativos, o que ocasiona a depressão” – Ulysses N. Santos, psiquiatra, coordenador-geral da Associação Evangélica de Psicanalistas e membro da Igreja Batista Filadélfia (Vitória/ES)

Quando questionada sobre como surge a depressão e quanto à possibilidade de o mal ser considerado congênito, Carolina pontua que o transtorno tem uma patogênese (forma como afeta o organismo progressivamente) complexa e multifatorial que leva a uma expressão fenotípica (características observáveis, visíveis), resultado da interação genética com fatores externos, que é a apresentação dos sintomas. No entanto, pondera, cada caso é heterogêneo e particular.

Há fatores que podem tornar o indivíduo mais suscetível: carga genética; mudanças na expressão gênica ao longo da vida (por aspectos endógenos ou ambientais); alterações no sistema neuroendócrino; padrões cognitivos e comportamentais mais rígidos com o tempo; e traumas sofridos na infância (negligência, abusos físicos ou sexuais) ou atuais (doenças, perdas, lutos). Todos esses elementos interagem de maneira complexa e ainda pouco compreendida para a gênese do processo depressivo. Estudos mostram que existe uma carga genética para depressão, sendo a ocorrência em gêmeos monozigóticos (idênticos/univitelinos/gerados a partir do mesmo óvulo) maior do que em gêmeos dizigóticos (gerados a partir de dois óvulos). Mas, até o momento, nenhum gene específico foi associado ao problema.

Pequenos deprimidos

A psicóloga conta que percebe em seu consultório um aumento no número de atendimentos de casos de depressão em crianças e ressalta que a abordagem com esse público requer uma via mais lúdica, a fim de acessar as emoções e os pensamentos. “A intervenção com uma criança deprimida implica a sensibilização dos pais para a importância do seu papel no tratamento, quer como pais, quer como interlocutores com a escola e grupos de pares. Em casos de maior gravidade, poderá ser benéfica a intervenção psicofarmacológica, de modo a diminuir a gravidade dos sintomas, para iniciar o trabalho psicoterapêutico”, pontua.

Depressão: doença ou problema espiritual?
“Estudos mostram que crianças e idosos acima de 70 anos têm uma prevalência menor de ocorrência da doença. Todavia, percebe-se uma incidência uniforme entre as idades de 20 a 70 anos para seu surgimento, sendo as mulheres mais propensas que os homens” – Carolina Huguett Batista, psicóloga e especialista em Neuropsicologia

Detectar a depressão infantil exige muita atenção dos pais. Alguns dos fatores que podem ocasionar o problema são mudanças de casa, escola, separação dos pais e ambiente familiar conturbado, enfatiza Gisele Santos Dornelles, psicóloga clínica, graduada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e pós-graduada pela Universidade La Salle (Unilassalle) em Psicologia Clínica. Como sintomas que podem ser observados nesses casos, ela cita irritação e apatia. Além disso, a criança começa a manifestar medos que não tinha antes e a se apegar a algum adulto na família.

Já o diagnóstico em adolescentes se torna mais difícil, dadas as mudanças bruscas típicas dessa idade e as alterações hormonais. “Todas as pessoas, independentemente da idade, sexo, cor ou classe social, podem vivenciar a depressão. Mundialmente, as estatísticas mostram que as mulheres são as mais afetadas, com taxas de 5,1%, em detrimento dos homens, com 3,6%”, reforça a profissional, membro da Igreja Batista Betel de Porto Alegre (RS).

Pastor e psicólogo, Davi Hoffmann explica que a cada dia mais a depressão tem sido identificada em crianças. A OMS, comenta, aponta o transtorno depressivo como a principal causa de incapacidade de realização das tarefas do dia a dia entre jovens de 10 a 19 anos. No Brasil, estima-se que a incidência do distúrbio gire em torno de 1% a 3% da população entre 0 e 17 anos.

A doença também não escolhe fé ou classe social, pois têm sido comuns relatos de pessoas consideradas bem-sucedidas que sofrem ou já sofreram com o problema. Um exemplo é o jogador de futebol Kaká, que construiu uma carreira de sucesso no Brasil e no exterior. Ele contou que havia passado por uma fase difícil, de rejeição por parte da torcida, no Real Madrid, time espanhol onde jogou até 2013, e, ao iniciar suas atividades em um novo clube, o Milan, da Itália, sofreu uma lesão logo no primeiro jogo, o que o fez pensar que havia encerrado sua carreira. Ao perceber que muitas coisas não estavam dando certo, o meia começou a ficar abatido, a sentir tristeza profunda, a chorar. Somente ao buscar ajuda profissional obteve êxito no tratamento da doença.

Na vida cristã

Com os cristãos não é diferente. Ainda que existam na Bíblia relatos acerca da condição difícil vivida por alguns personagens, a maneira errônea de interpretar o sofrimento e a falta de ajuda e compreensão pode agravar o problema, principalmente quando tratado como ação demoníaca e não reconhecido como uma doença que precisa de orações e também de acompanhamento profissional. De acordo com a Organização das Nações Unidas no Brasil (ONU BR), cerca de 800 mil pessoas morrem por suicídio a cada ano – sendo a segunda principal causa de morte entre jovens de 15 e 29 anos.

O Pr. Ulysses N. Santos, psiquiatra, coordenador-geral da Associação Evangélica de Psicanalistas e membro da Igreja Batista Filadélfia (Vitória/ES), elucida que na maioria dos casos de suicídio a intenção das vítimas não é tirar a própria vida, mas sim reverter a situação na qual se encontram.

Depressão: doença ou problema espiritual?
Fonte: Entrevistados

A depressão pode se apresentar de três formas: leve, moderada e grave, sendo que nesta última há sentimento de profunda tristeza e, por consequência, de culpa maior, de frustação por não se sentir capaz de promover a reversão da situação, o que pode levar à tentativa de suicídio.

“A perda da força é resultante de uma desorganização hormonal cerebral, os neurotransmissores motivadores podem baixar por fenômenos genéticos, circunstanciais cumulativos, o que ocasiona a depressão. A pessoa vai perdendo a energia e fica incapaz de reagir, fica fragilizada por vários fatores, acrescidos do sentimento de culpa, o que pode levá-la a fazer uma bobagem”, elucida.

Pr. Davi pontua que a Bíblia não fala diretamente sobre depressão, mas apresenta personagens que enfrentaram o transtorno. “O que observamos na Bíblia é que o recurso espiritual foi fundamental na recuperação da pessoa com depressão. Podemos ver a presença constante de Deus com indivíduos que sofreram depressão, como no caso de Elias. É muito importante saber que, mesmo que eu não consiga orar ou sentir Deus, Ele continua ali do meu lado, ajudando-me a atravessar aquele momento. Ele sabe o que estou vivendo e está cuidando de mim nesse momento.”

Para o tratamento da doença é fundamental a resiliência, que consiste na capacidade de lutar e enfrentar o problema. Porém, nem sempre existe. No livro de Jó, é possível ver sua dificuldade de reagir após perder sua saúde e o apoio da esposa. Em seu relato no capítulo 6:11-14 – “Onde estão as minhas forças para resistir? Por que viver, se não há esperança? Será que sou forte como a pedra? Será que o meu corpo é de bronze? Não sou capaz de me ajudar a mim mesmo, e não há ninguém que me socorra. Meus amigos me desapontaram. Uma pessoa desesperada merece a compaixão dos seus amigos […]” – fica clara a necessidade de ajuda.

O auxílio procurado por Jó foi encontrado em Deus, conforme descreve o capítulo 19:25 – “Eu sei que o meu Redentor vive, e que no fim se levantará sobre a terra” –, assim como vemos a providência divina narrada em 42:12 – “O Senhor abençoou a última parte da vida de Jó mais do que a primeira”. Entretanto, o próprio Jó relatou a necessidade de compreensão e auxílio, o que nos mostra que a fé em Deus é o essencial, mas hoje Ele capacita profissionais para ajudar no tratamento.

Citando Gálatas 6:12 – “Levai as cargas uns dos outros, e assim cumprireis a lei de Cristo” –, o Pr. Ulysses pondera sobre a importância da comunhão no tratamento da depressão, à luz da Palavra de Deus. Ele esclarece que a “compreensão do marido, de um filho que está longe”, é essencial no auxílio a quem sofre com a doença, muito importante quando se trata de uma manifestação leve ou moderada. Quando for grave, são necessários a intervenção profissional e o uso de medicamento.

“Como cristã, acredito que nenhuma doença ou transtorno foram planejados por nós. Logo, creio que não somente as doenças físicas ou psicológicas, mas também os modos desiguais e opressores que vivemos em nossa sociedade, os modelos familiares disfuncionais e a baixa qualidade de vida e acesso à saúde são frutos de uma condição decaída do homem que através do pecado se afastou do projeto inicial de plenitude e vida eterna de seu Criador”, pondera Carolina.

Depressão X problema espiritual

Davi Hoffmann reitera que infelizmente há uma tendência entre os evangélicos de atribuírem uma causa espiritual para todos os eventos da vida, principalmente para aqueles não possíveis de serem explicados, humanamente falando. Ele aponta, também, que a depressão pode ter causas espirituais, como a opressão e a culpa, no entanto jamais devem ser consideradas como únicos fatores. “Muitas vezes isso agrava o sofrimento da pessoa com depressão, pois, além de estar sofrendo com o transtorno sobre o qual não tem controle, padece ainda mais por achar que é sua culpa, por não ter fé, ou algo parecido”, afirma.

Depressão: doença ou problema espiritual?
Fonte: ONU BR

Com relação ao tratamento, o pastor informa que “o período de duração dependerá de diversos fatores: adaptação à medicação, evolução do processo terapêutico e elementos externos que propiciem condições favoráveis à recuperação”. Vale ressaltar que, colocando Deus à frente de tudo, é possível transpor qualquer barreira, como descrito em Deuteronômio 31:8: “O Senhor, pois, é aquele que vai adiante de ti; Ele será contigo, não te deixará, nem te desamparará. Não temas, nem te espantes”.

As pessoas tendem a achar que a depressão é uma doença da atualidade, frisa a psicóloga Gisele Dornelles. Contudo, em Tessalonicenses 5:14, há instrução para falar de forma consoladora às almas deprimidas – “Rogamo-vos, também, irmãos, que admoesteis os desordeiros, consoleis os de pouco ânimo, sustenteis os fracos, e sejais pacientes para com todos”. Em Lucas 5:38, há um reconhecimento de que os homens precisam de médico: “E Jesus, respondendo, disse-lhes: Não necessitam de médico os que estão sãos, mas, sim, os que estão enfermos”. Considerando a importância de exercitar a fé, ela cita Mateus 21:22, que diz: “E, tudo o que pedirdes em oração, crendo, o recebereis”.


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