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quinta-feira, 28 março 2024

Abuso espiritual: Quando o perigo está no púlpito da Igreja

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Para alguns evangélicos, estar na igreja se tornou uma experiência dolorosa que os tem levado para cada vez mais longe da presença de Deus - Foto: Reprodução

Para alguns evangélicos, estar na igreja se tornou uma experiência dolorosa que os tem levado para cada vez mais longe da presença de Deus

Por Fabiana Tostes

Se o mundo jaz no maligno, a Igreja do Senhor Jesus na terra deveria ser uma porta de esperança para os aflitos. Um hospital para os doentes da alma. Uma fonte de amor para os rejeitados e sofridos. Deveria ser a expressão da vontade de Deus neste mundo. Deveria, mas nem sempre é.

Infelizmente, há casos – e não poucos – em que muitas congregações se perdem no propósito de servir a Deus. Carregadas por líderes tiranos, manipuladores e dominadores, elas se tornam terrenos férteis para todo tipo de abuso espiritual – um termo ainda pouco debatido na teologia, mas muito conhecido e doloroso para quem dele se torna vítima.

Especialistas definem o abuso espiritual como o uso da posição de liderança ou de poder para seduzir, influenciar e manipular as pessoas a fim de alcançar interesses próprios. Quem pratica é muito hábil para passar a impressão de que aquilo que querem é do interesse de Deus e de Sua obra, quando, na realidade, é para satisfazer o ego. Já quem é vítima desse sistema pode demorar anos para se libertar e carregar por um bom tempo as marcas de dor, tristeza e revolta por ter sido abusado. Há quem forme grupo de autoajuda na internet, outros procuram psicólogos, terapeutas e psicanalistas, há quem se afaste da igreja e de Deus, e há casos extremos em que muitos fiéis entram em depressão, desenvolvem doenças graves e chegam até a cometer suicídio.

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A terapeuta familiar Anna Eliza Simonetti conhece a fundo esse drama. Atendendo a muitas famílias evangélicas, ela já pôde perceber que a figura da liderança está sempre muito presente nos relatos que levam seus clientes ao consultório.

“Ele disse que eu era um peso para a igreja. Disse na frente de outro líder e ninguém o repreendeu. Isso foi em 2012 e me gerou muitos danos emocionais. Eu saí de lá, mas até hoje carrego essa tristeza e lembro com dor desse fato” Anônima, fotógrafa 29 anos

“Já atendi um pai que se opôs ao casamento da filha e a levou para ouvir o pastor. Lá, o pastor disse para ela não se casar com tal pessoa, que diante de Deus ela não seria feliz. A moça se casou. Então, na primeira pequena crise que ela teve com o marido, do que ela se lembrou? Da palavra do pastor, da ordem que ele tinha dado para ela não se casar. O pastor poderia ter aconselhado, mas não ter dito o que ela deveria ou não fazer”, contou a terapeuta.

Num outro caso, também atendido por Anna Eliza, um jovem estava confuso porque não conseguia decidir a quem obedecer: se ao pai ou ao líder da igreja. “O pai desse jovem iria abrir um ministério e pediu a ajuda do filho, que foi conversar com seu líder, na igreja. O líder disse que ele não tinha a bênção para sair da igreja local e o proibiu de ir ajudar o pai. O rapaz, então, entrou em conflito”

Como identificar um líder abusador

  • Quando estende a autoridade de liderança a áreas da vida que ultrapassam os limites dados pela Bíblia. Quando quer determinar, por exemplo, com quem o liderado deve se casar, que profissão seguir, onde deve morar.
  • Impõe sanções quando não houver submissão ao item anterior.
  • Promove sentimento de culpa generalizado quando não existir conformação aos desejos da liderança.
  • Rotula as pessoas que resistem a serem manipuladas como insubmissas, orgulhosas, rebeldes, de coração duro, etc.
  • Ocupa o lugar de Deus na vida dos liderados. Em vez de estimular as pessoas a terem comunhão com Deus para tomar decisões, cria um sistema de dependência à liderança.
  • Manipula e distorce a Palavra de Deus para se conformar aos seus desejos.
  • Ensina que as pessoas devem ser julgadas pelas opiniões que possuem acerca da liderança.
  • Ensina que não existe verdadeiro discipulado fora do redil em que a pessoa se encontra e que ela afundará na fé se deixar o local. • Em vez de centrar o ensinamento em Jesus, diz que é necessário seguir outras práticas e invencionices antibíblicas para “agradar a Deus”.
  • Prega que o verdadeiro discípulo deve colocar a vontade do outro, normalmente do líder, acima da própria vontade. Não admite ser questionado e confrontado com a verdade.

Tendo em vista sua experiência, Anna Eliza traça um perfil dos ambientes em que o abuso espiritual é mais propício de ocorrer. “As igrejas onde o estilo de liderança é hierarquizado, onde o líder tem que dar conta da vida dos liderados, onde existe o ensino de que ‘eu só posso viajar se meu líder deixar’, ‘só posso comprar se meu líder autorizar’, são ambientes mais vulneráveis à manipulação”, afirmou. “Cheguei a atender um casal em que o líder dizia até quantas vezes eles tinham que ter relação sexual na semana, para manter a santidade. Isso é perigoso. Quando o líder, dita as regras, se torna um prato cheio para a manipulação”. Para a especialista, além de gerar dependência emocional, imaturidade e problemas familiares, esse tipo de comportamento também pode se transformar numa revolta contra Deus.

Uma fotógrafa de Vitória, de 29 anos, conta como foi dolorido ouvir de seu pastor que não era bem-vinda na igreja: “Ele disse que eu era um peso para a igreja. Disse na frente de outro líder, e ninguém o repreendeu. Isso foi em 2012 e me gerou muitos danos emocionais. Eu saí de lá, mas até hoje carrego essa tristeza e lembro com dor esse fato”, disse a fotógrafa A., que pediu para não ser identificada.

“Cheguei a atender um casal em que o líder dizia até quantas vezes eles tinham que ter relação sexual na semana, para manter a santidade. Isso é perigoso” Anna Eliza, terapeuta

Há casos, porém, em que a vítima de abuso resolve abandonar tudo, entregar-se à depressão e até tirar a própria vida. Foi o que aconteceu com uma jovem que fazia parte de um pequeno grupo nos lares juntamente com o professor H., 46 anos (os nomes e o local do fato não serão divulgados a pedido dele).

Segundo o professor, a jovem, recém-convertida, fez uma viagem e ao voltar teria sido acusada de ter esfriado na fé. A discipuladora da moça teria insistido para que ela confessasse, diante da congregação, qual teria sido o seu pecado durante tal viagem. A jovem se recusou a se expor diante de todos e, chamada de rebelde, foi desligada do rol de membros. “A discipuladora disse que ela não se rendia à liderança e por isso a estava entregando a Satanás. Passado algum tempo, essa jovem se matou, o que me deixou profundamente abalado”, lamentou o professor.

Ele conta que também foi excluído da mesma igreja por questionar a atitude do pastor, que não visitava os membros em seus lares. “Você não serve para caminhar conosco”, teria dito o pastor ao expulsá-lo da congregação.

Inspiração

Foi em busca de respostas para casos como esses que a jorna[1]lista Marília de Camargo César resolveu escrever o livro “Feridos em Nome de Deus”, que após seis anos de seu lançamento já vendeu mais de 20 mil cópias. Ela também relatou sua experiência pessoal na obra. “Fui membro de uma igreja durante 10 anos. De um dia para o outro, surgiram denúncias de abuso de autoridade contra um dos pastores, muitos o acusavam de manipulação, abuso financeiro e daquilo que denominei de abuso espiritual. No começo ficamos atônitos. O livro nasceu assim”, lembrou.

Segundo sua pesquisa, o tipo mais comum de abuso é o financeiro, quando o líder utiliza a Bíblia para se autofavorecer. “Muitas pessoas que são abençoadas pelo pastor querem retribuir com presentes. É natural. O problema é quando isso passa dos limites e quando o líder passa a se ver como merecedor desses agrados e começa até a pedi-los. Sugiro no livro que os estatutos das igrejas contemplem um código de ética que defina um valor para esses presentes. Seria um jeito de proteger o próprio pastor”, disse Marília.

E ela completa: “Os assédios emocional e espiritual são mais sutis. O pastor humilha o fiel diante da congregação, tratando-o como um rebelde, um insubmisso, apenas porque ele ousou questionar um pensamento”. E isso continua acontecendo, segundo Marília. “Continuo recebendo mensagens de pessoas feridas. Isso é um termômetro que o abuso continua”.

“Precisamos combater a idolatria ao líder a todo custo. Pastores são seres humanos como nós” – Marília de Camargo, escritora

Para o pastor e psicólogo Erasmo Vieira, da Igreja Batista de Morada de Camburi, em Vitória, os casos de abusos são frequentes e ocorrem da mesma maneira: “Todo tipo de abuso espiritual é oriundo de três fontes: a necessidade de poder, a necessidade de fama e a necessidade de dinheiro. Não é em nome de Deus que isso acontece, mas em nome desses três deuses. Tais líderes procuram apresentar a instrução num formato baseado no terrorismo. Começam as imposições, que nada têm a ver com a Bíblia. Então, a pessoa que não possui fundamento doutrinário fica prisioneira ao que ouviu impositivamente. Já atendemos pessoas que deixaram de frequentar esse tipo de congregação. Saíram de ministérios assim, por conta dos direcionamentos autoritários ou amedrontadores.

As pessoas precisam de ajuda psicológica e serem acolhidas amorosamente para se sentirem livres. Afinal de contas, Jesus nos diz que, se conhecermos a verdade, ela nos libertará. Tem que fazer um trabalho de acolhimento profundo, de companheirismo cristão”, afirmou o pastor, que tem 48 anos de ministério.

 A busca por fama, dinheiro e poder não é exclusiva das lideranças de hoje. A Bíblia está repleta de exemplos de autoridades religiosas, até porta-vozes de Deus, que sucumbiram a esse desejo. Um episódio se passa no Evangelho de Mateus (20:20-21), quando a mãe dos discípulos Tiago e João pede a Jesus que, com a chegada do Reino, seus dois filhos pudessem “se assentar” um à esquerda e outro à direita, numa tentativa de ter autoridade sobre os outros.

“A discipuladora disse que ela não se rendia à liderança e por isso a estava entregando a Satanás. Passado algum tempo, essa jovem se matou, o que me deixou profundamente abalado” – Anônimo, Professor, 46 anos

No entanto, Jesus foi rápido para ensinar que o modelo, no Reino de Deus, não era esse: “Sabeis que os governadores dos povos os dominam e que os maiorais exercem autoridade sobre eles. Não é assim entre vós; pelo contrário, quem quiser tornar-se grande entre vós, será esse o que vos sirva; e quem quiser ser o primeiro entre vós será vosso servo; tal como o Filho do Homem, que não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos”, afirmou Jesus (Mateus 20:24-28).

O apóstolo Pedro também deu uma orientação semelhante, em sua primeira epístola: “Apelo aos presbíteros que há entre vocês (…) pastoreiem o rebanho de Deus que está aos seus cuidados. Olhem por ele, não por obrigação, mas de livre vontade, como Deus quer. Não façam isso por ganância, mas com o desejo de servir. Não ajam como dominadores dos que lhe foram confiados, mas como exemplo para o rebanho” (1 Pe 5:1-3).

Para o pastor Erasmo, há uma forma de escapar da tentação da dominação. “Quando a pessoa é chamada para o ministério, não está vacinada contra todas essas tentações. Tem que pautar a vida na total dependência do Espírito Santo. O líder de uma igreja deve ter vida devocional”.

“Todo tipo de abuso espiritual é oriundo de três fontes: a necessidade de poder, a necessidade de fama e a necessidade de dinheiro” – Erasmo Vieira, pastor

“O grande desafio do líder é fazer com que as pessoas aprendam a se relacionar com Deus, a depender de Deus e não entregar suas decisões à liderança. Hoje, infelizmente, vivemos na geração fast-food, que quer tudo rápido, fácil e pronto. Ninguém quer ter esforço, e relação com Deus demanda esforço. É mais fácil ir atrás de um guru e se sujeitar à manipulação”, atestou a terapeuta Anna Eliza.

Para Marília, o que tem de ser combatido é a idolatria a líderes, pastores, apóstolos e afins. “Precisamos buscar ambientes saudáveis, com uma teologia contextualizada, que faça uma leitura do mundo baseada na graça, no amor, no perdão, olhando sempre para Jesus. Precisamos combater a idolatria ao líder a todo custo. Pastores são seres humanos como nós, falíveis, fracos, e precisam ser tratados como tal”.

Hoje, talvez neste momento, há muitos que se encontrem debaixo desse jugo do abuso espiritual. Reconhecer essa condição é o primeiro passo para os que buscam se livrar desse tipo de relacionamento. Decidir se libertar e perdoar os abusadores pode ser um processo difícil e demorado, mas é ele que conduz à liberdade que Cristo conquistou na cruz para cada um de nós.

“Procuro as pessoas para pedir perdão”

A experiência do administrador e ex-pastor C.*, de 43 anos, em uma grande igreja de São Paulo, foi de vítima e também de algoz do abuso espiritual. Por ter se tornado pastor em um sistema eclesiástico onde reinavam a manipulação e o domínio, o administrador sofreu, mas também reproduziu o mesmo comportamento abusivo com seus liderados. Foi necessário sair do país e passar três anos servindo a Deus numa outra igreja, em outra cultura, para ele perceber quão danoso era o sistema em que estava envolvido.

“Quando eu saí do país, comecei a perceber que o tipo de postura que eu tinha com minha liderança não era correto. Eu ligava para meu líder até para saber se poderia visitar uma cidade ou não. Era uma relação de domínio sobre minha vida pessoal, sobre minhas vontades e até sobre meu casamento. Eles davam ordens sobre o que fazer e o que não fazer”, relatou.

Segundo ele, as mensagens e os ensinamentos da igreja enfatizavam sobre os perigos da desobediência ao líder ou de “se tocar no ungido do Senhor”, de uma forma que intimidava qualquer membro a questionar a liderança. E o tipo de relação era de subserviência total. “Era uma relação de domínio, de pregar que o profeta merecia dupla honra, e os membros encham os líderes de presentes. Eu não concordava com isso”.

“Os assédios emocional e espiritual são mais sutis. O pastor humilha o fiel diante da congregação, tratando-o como um rebelde, um insubmisso, apenas porque ele ousou questionar um pensamento” – Marília de Camargo, escritora.

Ao voltar para o Brasil e ver que a situação continuava a mesma, o ex-pastor decidiu sair. “Foi uma experiência dolorosa. Fiquei 14 anos naquela igreja, e todo o processo de saída gerou em mim angústia, depressão, tristeza, medo… Meu sentimento era de ter sido defraudado, roubado. Mas a minha maior tristeza foi a quebra de relacionamento com os irmãos”.

Ele também decidiu não mais pastorear. “Precisava me desintoxicar. Não estou pastoreando, estou em tratamento ainda. Isso já faz oito anos, mas até hoje faço terapia. Até hoje procuro as pessoas com quem a gente lidou para pedir perdão, porque por ter aprendido errado acabei reproduzindo, como pastor, um comportamento errado. Não cheguei a me afastar de Deus, mas até hoje isso dói em mim”, detalhou.

Esta matéria foi publicada originalmente na edição 221 da revista Comunhão, de Março de 2015. As pessoas ouvidas e/ou citadas podem não estar mais nas situações, cargos e instituições que ocupavam na época, assim como suas opiniões e os fatos narrados referem-se às circunstâncias e ao contexto de então.

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